O GLOBO
Assevera antiga máxima que “um pai sustenta dez filhos, mas dez filhos não sustentam um pai”, sábio enunciado, cujo acerto vemos o tempo todo e que os velhinhos dos asilos confirmarão fartamente. Cobertos de razão estão os coroas que ouvem felizes tudo o que lhes dizem na churrascaria, no dia dos pais ou das mães, mas mantêm um ceticismo sadio e tratam de juntar os rendimentos que podem, que é para depois não serem provas vivas dessa máxima. Como hoje, ao que parece, amanheci mais recheado de provérbios do que Sancho Pança, acrescento que seguro morreu de velho e não de maus-tratos na Casa de Amparo aos Velhinhos Esperando-Ela.
Lembro isso por causa de minha orgulhosa quão maltratada condição de itaparicano. Como creio ser do conhecimento de vocês, mantenho permanente contato com a ilha e confirmo sempre que o Brasil não liga para Itaparica, enquanto Itaparica morre de preocupação pelo Brasil. Não é justo, mas é a cruel verdade. Mãe da pátria, em perigos e guerras esforçada desde os primórdios do Brasil, hoje é vítima de ingratidão e olvido. Nada como um dia depois do outro, o mundo dá muitas voltas — sopra o bom Sancho novamente.
Pois é, tudo isso é aplicável, de várias maneiras e conforme a imaginação de cada um, à situação corrente em Itaparica. Se, no resto do Brasil, o problema das quotas raciais exalta alguns ânimos e provoca desafetos e querelas, em Itaparica, onde ninguém tem certeza da raça de ninguém e Zecamunista diz que quem tem raça é cachorro, a questão traz ansiedade, insegurança e agitação pública. Zé Pretinho mesmo, que se orgulha dos olhos azuis mas no geral é negão, deixou de aparecer no Mercado e afirma que vai contratar advogado para livrá-lo das malhas do governo.
— Aqui pra eles que eles vão me pegar e me botar pra estudar! — me disse ele indignado. — Vão pegar um desocupado! Imagine se o homem tivesse perdido o tempo dele estudando! Estava igual a você, escrevendo pra jornal e pedindo abatimento no quilo de tainha! Eu também quero me fazer! Aqui, ó! Disso se aproveitou Ary de Almiro (que é meio acaboclado de cabelo escorrido e não tem certeza sobre a raça que lhe atribuiriam, mas confidenciou que aceita qualquer uma, contanto que não tenha que estudar e, melhor ainda, venha com um agradozinho pecuniário) para fortalecer sua Escola Filosófica Socrática Só-Sei-Que-Nada-Sei, que cobra uma certa quantia aos discípulos para convencê-los das vantagens de saber o mínimo possível e de ficar com indisposição estomacal se tiverem que ler, estendido também esse não-saber ao que de desagradável se passar em torno. Ary aperfeiçoou Sócrates, tropicalizou-o, vamos dizer.
“Nada sei, nada li, nada ouvi, nada vi, tudo falo”, dizem os seus neossocráticos, que mantêm um retrato oval do presidente pendurado na sala de reuniões.
“Presidência eu não garanto”, me disse Ary, “mas, com mais um tempinho, com certeza já vou ter dois deputados prontos pra serem eleitos, até as tabelas de preços eles já estão fazendo bem”.
E se encontrava o establishment da ilha em tal ebulição, quando estourou como uma bomba, no Bar de Espanha, a tremenda novidade. Anunciavam tevês, rádios e gazetas que o governador da Bahia entregara ao presidente da República o projeto de construção de uma ponte que ligará a ilha a Salvador.
O quê? Não, não era o fato de a ilha não ter sido consultada o que interessava, a isso já estamos acostumados, era a ponte propriamente dita. Que pensar dela, que queria dizer notícia tão inesperada? Só mesmo as lideranças intelectuais da ilha podiam pronunciarse, orientando a visão dos conterrâneos.
Felizmente, elas nunca deixam de acudir ao chamado do dever. Achatando na cabeça o boné, como faz quando está com o ânimo cívico exacerbado, Zecamunista já chegou discursando e causando pesadas baixas no contingente de cobras e lagartos da ilha, alguns dos quais ameaçados de extinção, como “lorpas” e “biltres”, que ele usou, entre muitos outros, para xingar os defensores da ponte. O que era que essa ponte ia fazer? Acabar com a ilha de vez e transformá-la em periferia de Salvador, com 128 favelas montadas no dia da inauguração da ponte! E tudo isso a um custo, dizem eles, de um bilhão e meio de dólares, como se um bilhão e meio de dólares fosse um saquinho de amendoim. “E que bilhão e meio de dólares, bote bilhão de dólares nisso, deve estar sobrando dinheiro para portos, estradas e outras miudezas, porque essa merda não sai por menos de dez bilhões!”, bradou Zecamunista, ajeitando o boné para parecer com o de Lenine. “Mais um golpe da corrupção contra o proletariado, eles querem é meter a mão na grana, essa obra não vai acabar nunca e, se acabar, o pedágio não paga em 250 anos!” Mas a contrapartida não se fez tardar.
Ainda de gravata, vindo de Salvador, onde ganha a vida como orador oficial de dezenas de instituições, Jacob Branco trouxe a coceira da dúvida aos já então quase convencidos por Zecamunista. O nobre orador bolchevique, disse Jacob, via as coisas pelo lado negativo. Era da escola do Idealismo Ideológico, enquanto ele, Jacob, era da escola do Realismo Realizador, via as coisas pelo lado positivo. O lado positivo era o seguinte: ia entrar dinheiro na ilha, não ia? Dinheiro gosta de perguntas? Não, não gosta. Alguém aqui vai fazer pergunta, se entrar dinheiro no bolso? — Não vai — continuou Jacob, afrouxando a gravata ao estilo Frank Sinatra e pedindo um Old Eight legítimo.
— Eles se esforçam para ensinar, vocês é que não aprendem: no Tesouro e n’água-benta todo mundo mete a mão. Já diziam os antigos, não sei o que é que estão estranhando.
Bem, não deixa de ser verdade. E, além do mais, onde o dinheiro fala a verdade cala, acrescentamos Sancho e eu.
Entrevista:O Estado inteligente
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