O vestibular funciona, mas
deve acabar. E isso é bom
"Embora selecione os melhores, o exame vestibular
feito no Brasil atualmente é inconveniente para os
candidatos e massacra o ensino médio"
Valeria Gonçalvez/AE |
Com os dias contados |
Ao contrário do que pensam alguns, os nossos vestibulares são impecáveis para a tarefa de selecionar os melhores candidatos. Como nos países de educação séria, buscam identificar os alunos que melhor dominam os conteúdos do ensino médio. Há sólida evidência de que barram os mais fracos e aprovam os mais sabidos, escolhendo assim os que terão mais probabilidade de sucesso nos cursos superiores. Sua administração é ágil, sem fraudes e mostra resultados rapidamente. Coisa de país sério. Várias nações do nível do Brasil não têm nada comparável. Ora, se são tão bons assim, por que o MEC anuncia sua iminente decapitação?
Em contraste com pretéritos acessos de burrice, desta vez o MEC está coberto de razão. Embora descubra e selecione os melhores, o vestibular atual é inconveniente para os candidatos. E, pior, massacra o ensino médio.
Para um aluno genial – e que sabe disso –, basta escolher seu curso favorito e fazer o vestibular correspondente. Mas os outros têm todo o interesse em fazer tantos vestibulares quanto logisticamente possível. A maioria não sabe nem onde nem em que vai passar. Portanto, suas opções aumentam se fizer muitos vestibulares. Contudo, essa operação é penosa e, sobretudo, cara. Há múltiplas taxas a pagar e mais os deslocamentos entre cidades. Sofre a equidade, pois muitos não têm recursos para isso. Dessa forma, o vestibular único é um presente generoso para os alunos mais modestos.
Porém, o problema mais grave está na influência funesta sobre o nível médio. Diante das orientações vagas dos parâmetros curriculares e da realidade concreta do vestibular da universidade pública mais próxima, o ensino médio se vê atraído para este, como a mariposa para a lâmpada.
Entendamos a lógica do vestibular. Inclui perguntas fáceis, para separar os burrinhos dos apenas meio burrinhos. E, entre os 2% mais sabidos, é preciso identificar o 1% ainda melhor, para que eles sejam aceitos nos cursos hipercompetitivos. Conseguir isso, só com perguntas difíceis. Porém, a presença de perguntas terrivelmente ardilosas ilude o ensino médio, pressionado a ensinar tudo o que pode aparecer na prova.
O resultado é uma inundação curricular. É muito mais matéria do que é razoável esperar que a vasta maioria dos alunos possa digerir. Ao contrário de países como o Japão – em que o currículo é desenhado para que todos possam entender tudo –, somente um ou outro gênio tupiniquim conseguirá se beneficiar dessa abundância. Para a maioria, o excesso de assuntos dilui o ensino – é muita água deitada ao feijão. Quando se tenta ensinar demais, aprende-se de menos. Não há tempo para profundidade. Portanto, não há tempo para uma real educação. É decorar palavras e fórmulas, o que sabemos ser uma perversão do ensino.
Uma escola que queira simplificar arrisca-se a ver os pais retirar de lá seus pimpolhos, pois não está ensinando tudo o que pode cair na prova. Contudo, não nos esqueçamos: mais de três quartos dos alunos do superior entraram em cursos em que o vestibular é apenas uma liturgia, pois passam quase todos. O que é ainda pior, escolas em que poucos entram no superior acabam seguindo a boiada e tentando ensinar demais. Ou seja, para pescar o 1% que vai para a medicina, arrasta-se todo o ensino médio para a superficialidade de decorar infindáveis nomes de bactérias, enzimas e pedaços das células.
Portanto, mudar o sistema é uma boa ideia. Quando se cria uma prova centralizada e única, acaba-se com o passeio aflito para prestar múltiplos vestibulares. Como são muitos candidatos, diluem-se os custos de preparar uma prova tecnicamente sofisticada. Ainda mais importante, é possível formular um teste circunscrito aos aprendizados essenciais do ensino médio. Os vestibulares atuais são feitos por professores que buscam garantir o conhecimento de suas matérias por parte dos calouros. Meritório. Mas, quando todos fazem o mesmo, a prova fica ambiciosa demais. Em contraste, uma prova concebida para o ensino médio que almejamos tem melhores chances de conter as tentações dos especialistas de cada área.
O Enem é o candidato mais óbvio para substituir os vestibulares tradicionais. Em que pesem alguns problemas técnicos, é uma prova que vem melhorando ao longo do tempo. Sabemos que seleciona praticamente os mesmos candidatos que um vestibular tradicional. E, ao contrário dos vestibulares, privilegia o raciocínio e o conhecimento dos conteúdos centrais que devem ser aprendidos no médio. Dispensa decoreba. Esse é o lado bom, mas também traz perigos. Se a prova ficar apartada demais dos conteúdos curriculares tradicionais, haverá o risco de que as escolas parem de ensiná-los. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Com boas razões, o MEC quer temperar o Enem com um pouco mais de currículo. O equilíbrio do tempero é crítico. Currículo de mais, volta a ser vestibular de federal. E, de menos, deixa de orientar o ensino. Além disso, para que se reduza a margem de erro, é preciso aumentar o número de perguntas, mas isso é problema menor.
Os candidatos fazem a prova e ganham uma nota. Mas e aí? O sistema vai parecer um pouco com o americano (exceto pela diferença nas provas). Lá, os alunos fazem o teste SAT, que passa a ser o certificado nacional do tanto que aprenderam na escola. Munidos dele, apresentam-se a diferentes instituições. Estas, por sua vez, decidem se aceitam um candidato com tal ou qual pontuação. Ademais, antes de decidir, costumam exigir outras demonstrações de aptidão ou vocação.
No caso brasileiro, o novo Enem será a cotação do aluno na "bolsa de valores acadêmicos". Diante dos outros candidatos que aparecerem, o curso compara e decide. Um curso muito concorrido poderá escolher os melhores talentos. Outros se contentarão com desempenhos mais modestos. Para as universidades, faz pouca diferença. Atualmente, baseado no vestibular da instituição, cada curso escolhe os melhores que optarem por ele. No sistema proposto muda pouco, embora seja uma prova nacional. Os candidatos ao curso trazem as suas notas, e os melhores serão escolhidos. O candidato brilhante do Acre pode entrar na medicina da UFRGS. Em contrapartida, a UFRGS poderá recrutar um aluno brilhante no Acre. Para os dois lados, a concorrência passa a ser nacional e mais aberta.
Se o curso de medicina achar que precisa de alunos que conheçam mais nomes de bichinhos e plantinhas, poderá fazer uma prova adicional. A grande vantagem é que somente os alunos voltados para esses cursos precisam decorar as amebas e protozoários. Naturalmente, o curso de educação física pode querer que os alunos deem a volta no quarteirão correndo, para ver se estão em boa forma. Os candidatos de arte podem se ver obrigados a desenhar a cara do reitor, para testar seus talentos. Por que não?
Na prática, há alguns desafios técnicos a ser enfrentados, sobretudo na logística de operar a "bolsa de valores acadêmicos" dentro de cada curso. Alunos aceitos em vários lugares têm de optar, criando um período de indefinição. Mas, comparado com o sistema americano, é mais simples, pois não tem a multiplicidade de critérios subjetivos usados nos Estados Unidos.
A grande dúvida é a adesão das universidades públicas. Vivemos em um país em que os impostos são transferidos às universidades públicas, mas o órgão encarregado de zelar pelo seu bom uso, o MEC, está proibido pela Constituição de dar palpites nesse assunto (não haveria espaço aqui para uma discussão responsável sobre autonomia). Nisso, a universidade federal é dona do seu nariz; portanto, o MEC não pode mandar que use o seu novo vestibular (embora possa azucrinar infinitamente, com suas armadilhas burocráticas). Para não ser refém delas, a adesão será voluntária.
Recordando: para selecionar os candidatos mais talentosos, nosso vestibular não deixa nada a dever aos de outros países. Seu problema é envenenar o ensino médio com o dilúvio de conhecimentos exigidos. Para consertar o médio, é preciso divorciá-lo desse vestibular. Já passou a hora de liberar o ensino médio dessa tirania. Afinal, só a metade dos graduados vai para o superior e, desses, só uma quarta parte para cursos de acesso competitivo. Faz muito sentido a proposta do MEC de exame nacional com um Enem turbinado. Vamos torcer para que seja bem implementada.