O GLOBO
Estive em Nova York recentemente e fui à “Exodus 2048”, uma exposição ainda em cartaz no New Museum. Logo na entrada, um choque: todo o quinto andar é um campo de refugiados israelenses.
Não se veem as pessoas, apenas as camas, a sujeira inevitável quando há mais gente do que espaço, brinquedos quebrados, restos de comida, sacos de batata frita vazios, uma estrela de Davi pintada na parede, pichações em hebraico. Qualquer pessoa informada sobre os tormentos da História, tanto para israelenses como para palestinos, fica com um nó na garganta. Desinformado, eu me indagava sobre o que o artista pretendia com aquilo. Como o nome da instalação apontava para o futuro, imaginei que se tratava de uma denúncia pró-Israel: se algo não for feito, se um certo antissemitismo muitas vezes inconsciente não for detido, uma nova tragédia poderá se abater sobre povo de história tão sofrida. Cheguei a pensar se não era de mau gosto fazer uma instalação assim, mesmo com o objetivo de denunciar.
Ainda emocionado, recebi de um rapaz um jornal, parte da exposição. A matéria principal, com a data de 2068, tinha o seguinte título: “Vinte anos depois da odisseia do ‘Exodus 2048’, uma entrevista com Miri Stern feita por Lotte Müller.” A introdução dizia o seguinte: “Nos últimos dias de 2048, a maior parte dos cidadãos de Israel já tinha deixado o país, numa das maiores transferências de população do século XXI. A realocação do governo de Israel para o Brooklin e a criação do Novo Estado de Israel em Uganda (Israel Hakhadasha) são fatos agora bem conhecidos. Miri Stern, uma cientista e fundadora do kibutz Eretz Hoven [o primeiro em solo europeu], falou com a jornalista Lotte Müller sobre a experiência penosa do ‘Exodus 2048’ e de sua própria história a bordo.” Seguia-se uma longa entrevista, que resumo aqui: no fim de 2047, já sem apoio dos EUA, com um Irã cheio de mísseis e com a população palestina superando a israelense por larga margem, Israel foi levemente bombardeado em Haifa, e rumores de que os árabes estavam tomando o país chegavam a todo momento a Tel Aviv. Um dia, certos de que o fim chegara, os israelenses foram tomados de pânico e abandonaram o país, sem luta. O governo no exílio se instalou no Brooklin, mas uma dissidência comprou terras em Uganda e decidiu recriar o país lá. Outro grupo rumou para a Europa a bordo do “Exodus 2048”, que, no entanto, foi rejeitado de cidade em cidade. Depois de três meses de muito sofrimento, a União Europeia, sob a liderança da Turquia, obrigou a Holanda a abrigar em campos de refugiados os 4.500 passageiros.
A historieta é parte do projeto “Futuro Imaginado” levado a cabo pelo Van Abbmuseum, museu da Holanda que primeiro exibiu a instalação. Minha crença de que se tratava de uma denúncia pró-Israel era reforçada pela referência ao “Exodus 1947”, navio com 4.500 sobreviventes do Holocausto que, saídos da França, tentaram aportar em Haifa, mas, impedidos pelos britânicos, vagaram pela Europa, até serem internados em campos de detenção na Alemanha ocupada. Um trecho da entrevista, porém, me estarreceu e me mostrou que a instalação era, sim, uma denúncia, mas contra Israel.
A entrevistadora pergunta por que os israelenses fugiram sem lutar.
Miri responde: “Havia, claro, uma solução militar, e Israel tinha um ótimo histórico de tentar resolver problemas políticos com o uso da força. Mas o que estava faltando a nós era uma motivação moral. Basicamente, nós oprimimos os árabes por um século, e não há nenhuma maneira de negar isso. O país inteiro se alienava disso, mas, bem no fundo, você sabia que o que você fez, ou o que foi feito em seu nome, não estava em linha com os padrões morais que você gostaria de ter seguido.
Da África do Sul a Israel, um regime que não tem legitimidade moral não pode durar para sempre. Nós tínhamos lutado por cem anos contra os árabes, mas sabíamos que, um dia, teríamos que pagar pela opressão que infligimos a eles. Então, sim, nós simplesmente partimos, todos nós desertamos.” Como é que é? Israel é ameaçado pelos árabes de extinção desde a sua fundação, todos os conflitos de que participou foram motivados por ataques ou ameaças árabes, concorda com a existência de um Estado palestino, e é nos israelenses que o artista quer vestir o figurino exclusivo de opressor? Pois é essa narrativa que está em curso há anos. Ignorando a complexidade do fenômeno que se vive naquela parte do mundo, em que israelenses e palestinos são igualmente vítimas de uma cilada da História, é cada vez maior a tentação de muitos de fazer de Israel o grande vilão, aquele que ataca, aquele que oprime, aquele que não tem dó nem piedade. Alexandre J. Eisenberg comparou esse fenômeno ao que chamou de a grande mentira: a propaganda antissemita de séculos, levada ao extremo pelo nazismo, descrevia os judeus como poderosos, egoístas, influentes e manipuladores, quando, na verdade, até a Segunda Guerra Mundial, a imensa maioria dos judeus europeus era de pobres sempre alvos de perseguições. Não importa, a mentira foi tão recorrente que levou milhões de alemães pacatos a acreditar que o martírio imposto por Hitler aos judeus, a “solução final”, era afinal justo.
Não sou paranoico, mas ideias artísticas como a que acabo de descrever dizem muito do nosso tempo. Michael Blum é o autor da instalação.
Ele é cidadão israelense, nascido em Jerusalém, e hoje vive em Viena. Sua iniciativa tinha como objetivo discutir a questão do asilo, no presente e no futuro, numa Europa cada vez mais fechada aos imigrantes. Nada mais bem intencionado. Obviamente, Blum não é antissemita e deve ser um pacifista ávido por um Estado palestino convivendo ao lado de Israel.
Mas, com seu projeto, pôs mais um tijolinho numa moderna grande mentira que muitos ajudam a construir, mesmo inconscientemente.
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