Em matéria de abrigo político o Brasil faz jus ao título de "curva de rio": todo o lixo do mundo encosta aqui. Quem primeiro nos alçou às manchetes internacionais foi Ronald Biggs, nos anos 70 do século 20.
Para quem não conhece a sua história, vale lembrar: Biggs era um dos membros da quadrilha que assaltou o trem pagador, em 1963, na Grã-Bretanha. Essa incursão ficou conhecida como "o crime do século 20". Foi preso e condenado. Fugiu pouco tempo depois. Andou pelo mundo e acabou dando as caras no Brasil, na década de 70. A Inglaterra não poupou esforços para tê-lo de volta. Tentou extraditá-lo. Impossível. O Brasil não tinha um tratado específico para tanto. Procurou, então, fazer com que ele fosse expulso. Nada feito. Biggs alegou que teria um filho com uma brasileira e isso bastou para sustar o processo.
Por mais de 30 anos, ele foi hóspede de nosso país. Como celebridade que era, tratou de viver de sua imagem. Camisetas, chaveiros, canecas, tudo pôde ser comercializado com a sua estampa. Alugava até mesmo algumas horas de convivência consigo.
Enquanto tudo isso ocorria, a imagem do Brasil no exterior caminhava para o fundo do poço. Nos livros e nos filmes, o grande sonho de todos os personagens que cometiam algum crime era se refugiar aqui. Nossas leis e nossos juízes - segundo se acreditava no mundo inteiro - eram por demais condescendentes com os bandidos estrangeiros. Não éramos, evidentemente, um país sério...
Até que certo dia Ronald Biggs avisou que voltaria para casa. Isso ocorreu já na presente década. Consternação geral. O simpático bandoleiro preferiu viver numa prisão inglesa a permanecer em liberdade no Brasil. Como pode?
Pois bem, eis que surge agora um substituto à altura. Trata-se de Cesare Battisti, um notório terrorista italiano. Ele não possui o charme de seu antecessor, é verdade, mas conta com nada menos do que quatro assassinatos em seu currículo. Ninguém sabe ao certo por qual razão ele veio morar aqui. Mas, sem dúvida, o antecedente aberto pelo inglês pesou em sua decisão.
O Brasil não o desapontou. Tão logo foi descoberto e preso - numa operação policial internacional -, numerosas vozes se levantaram em sua defesa. Deu certo. O governo brasileiro acaba de conceder a Battisti o status de refugiado político.
O italiano já se preparava para deixar a cadeia e assumir a carreira de escritor - que seria, claro, alavancada por sua recém-adquirida popularidade - quando percebeu que, desta vez, não seria tão fácil. O Supremo Tribunal Federal (STF) recusou-se a libertá-lo. Em vez disso, tratará de julgar o mérito da atitude tomada pelo Poder Executivo.
Como ficarão, então, o ministro da Justiça, que tomou a decisão, e o presidente da República, que correu para respaldá-la?
Se o STF decidir anular a decisão, ficarão muito mal, obviamente. Bem-feito. Tanto Lula como Tarso Genro terão de compreender que os brasileiros, em geral, há muito tempo deixaram para trás a vocação malandra e o espírito galhofeiro.
Caso contrário estaríamos todos aplaudindo a decretação, pelo governo nacional, da impunidade vitalícia do bandido italiano e também de todos os demais que por aqui aportarem.
Mas a questão vai muito além. Nossas relações com a Itália, no momento, estão bastante deterioradas. A simples concessão do status de refugiado político a alguém condenado por crimes de sangue já representou, por si só, um tapa na cara da opinião pública italiana. Se os italianos, no sentido contrário, tivessem oferecido abrigo político a alguém como Fernandinho Beira-Mar, nós também estaríamos possessos.
Mas nosso imprevisível e desconcertante ministro não se contentou com isso e foi muito além. Nas justificativas de seu ato fez questão de reiterar que os julgamentos de Battisti na Itália não foram justos nem obedeceram ao devido processo legal; e que, caso fosse devolvido, Battisti sofreria perseguições políticas pelas autoridades italianas.
Ora, os italianos têm todos os motivos para estarem indignados. Num único documento o senhor Tarso Genro conseguiu pôr em dúvida a isenção e a eficácia do Poder Judiciário italiano e menosprezar a capacidade da democracia italiana de coibir qualquer tipo de discriminação ou desejo, do poder constituído, de perseguir os seus desafetos.
Como desabafou um ministro italiano: "Não dá para admitir que o Brasil ou Lula venham nos dar lições sobre Justiça e Democracia." E ele tem razão. A democracia italiana existe desde o final da 2ª Guerra Mundial e, apesar da instabilidade dos seus gabinetes, tem sido mantida sem nenhuma interrupção.
O Brasil, no mesmo período, teve 4 presidentes depostos, 1 que renunciou ao posto, 1 que se matou, 1 que sofreu impeachment, 4 vices que assumiram em caráter permanente e 5 presidentes que chegaram ao poder sem votos.
De fato, tais circunstâncias nos descredenciam, de início, a pretender dar aulas de democracia a quem quer que seja. Só mesmo Genro não percebe isso.
Lula, ao defender a atitude tomada por seu estabanado ministro, como sempre extrapolou: declarou que o abrigo concedido a Battisti é uma questão de "soberania nacional".
Trata-se de um argumento apelativo. Tal qual uma meia de náilon, ele serve em qualquer pé. E é geralmente utilizado por demagogos e populistas. Já serviu, no nosso passado, para justificar o monopólio da Petrobrás ("O petróleo é nosso"), a existência de empresas estatais, o desrespeito contumaz aos direitos humanos, o nacionalismo econômico, o protecionismo comercial e uma série de outras bandeiras por si só indefensáveis.
Há, é claro, outras formas mais maduras de reafirmar a nossa independência, a nossa autonomia e a nossa soberania.
Não precisamos, para tanto, acolher todos os terroristas e assaltantes de banco que chegam às nossas praias.
Respeito é algo que se dá, não que se pede. Se o queremos, temos antes de nos dar a ele.
João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado
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