Dez razões para o otimismo
Giuliano Guandalini, Benedito Sverberi e Cíntia Borsato
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Avaliada pelos últimos indicadores de desempenho econômico e em vista de seu brilhante passado recente, a economia brasileira inspira preocupação. Milhares de profissionais valiosos perderam seu emprego nas indústrias mais dependentes do ambiente externo, como a Embraer, em que 4 200 demissões foram anunciadas – 20% de toda a força de trabalho da empresa. A inadimplência das famílias atingiu em janeiro o maior nível desde maio de 2002. A desaceleração do PIB é severa. Parece, portanto, não haver espaço para otimismo. Mas, como o otimismo tem de ser encontrado justamente nesses momentos mais duros, VEJA foi buscar razões que, realisticamente, nos permitissem afirmar que o Brasil vai escapar – mesmo que com escoriações – da surra que a economia mundial está levando nos cinco continentes. Logo no começo da encrenca, VEJA afirmou em uma Carta ao Leitor que o Brasil tinha chance de ser um dos últimos países a entrar na crise e poderia estar entre os primeiros a sair dela. É o que esta reportagem reafirma.
Seis meses depois da eclosão do turbilhão econômico que varreu Wall Street, com reflexos no mundo todo, a fase mais aguda da crise pode estar chegando ao "fim do começo" sem que os prognósticos mais funestos tenham se abatido sobre o Brasil. A economia brasileira já sofre, e sobre isso não há dúvida. Mas é consenso que o Brasil será um dos países menos afetados. Concordam com esse diagnóstico organizações como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a OCDE, a organização econômica dos países ricos. Com a ajuda de alguns dos melhores economistas do país, VEJA escolheu as dez principais razões de otimismo, resumidas e classificadas por sua solidez. A reportagem avança com um alerta sobre o calcanhar-de-aquiles da economia brasileira, o descontrole do gasto público de péssima qualidade, e se completa com uma coluna também otimista do economista Maílson da Nóbrega, com o sugestivo título "Por que o Brasil não quebra".
1 RESERVAS DE 200 BILHÕES DE DÓLARES INTOCADAS DEPOIS DE SEIS MESES DE CRISE
Passada a fase mais aguda da crise financeira internacional, as reservas brasileiras em moeda forte estão praticamente no mesmo volume. Permanecem no patamar de 200 bilhões de dólares. Pequena parte dos recursos foi usada até aqui, enquanto outros países torraram suas economias na tentativa de defender suas moedas – as reservas russas, por exemplo, já encolheram em quase 100 bilhões de dólares. "Ter acumulado esse colchão foi, certamente, um dos principais fatores de estabilidade", afirma o economista José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central e sócio da MCM Consultores. Graças a essas reservas, o setor público brasileiro liquidou o antigo drama da dívida externa, historicamente o grande calcanhar-de-aquiles do país em momentos de turbulência financeira. Basta lembrar que, nas crises de 1998 e 2002, o governo teve de recorrer a empréstimos emergenciais do Fundo Monetário Internacional (FMI) para restabelecer a confiança dos mercados e fechar as contas externas. Alexandre Schwartsman, economista-chefe do Santander e também ex-diretor do BC, diz que as reservas ainda trazem outro benefício essencial. Com elas, o país tornou-se credor em dólar. "Sendo credor, em vez de devedor, o país ganha com a desvalorização cambial ao ter sua dívida pública reduzida. Antes ocorria o contrário. Mais uma evidência forte de que, desta vez, o país não quebrará." Vale mencionar que o Banco Central também controla reservas internas de 186 bilhões de reais, correspondentes ao depósito compulsório retido dos bancos (esse valor era de 270 bilhões de reais antes da crise). Se houver uma nova fase de restrição ao crédito, como aconteceu de setembro a novembro de 2008, será possível usar ainda parte desse dinheiro para irrigar o sistema financeiro.
2 BANCOS COMPETENTES, REGULADOS, COM BAIXA EXPOSIÇÃO A RISCOS
O Tesouro americano anunciou na semana passada que vai tornar-se o maior acionista do Citigroup, com até 40% do capital do banco. Será uma forma de impedir o colapso da instituição, impensável até há pouco. É improvável que uma crise como a que assola o sistema financeiro dos Estados Unidos seja vista no Brasil. Os bancos americanos endividaram-se irresponsavelmente emprestando fortunas a quem não podia pagar. As instituições financeiras brasileiras (ao menos as maiores delas), ao contrário, possuem ativos saudáveis e são cautelosas. Essa prudência, fundamental na proteção do país contra a crise, resulta de traumas históricos e da ação exemplar do Banco Central (BC). Sobretudo na elaboração e na execução do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), implantado entre 1995 e 2000. O Proer é hoje tido como um dos mais bem-sucedidos planos da história. "Esse programa de saneamento foi a face mais visível de um processo que mudou a regulação bancária brasileira. Desde então, o BC manteve a seriedade na fiscalização e na supervisão do sistema financeiro", diz o economista Gustavo Loyola, que presidiu o Banco Central naquele período. Por sua parte, os maiores bancos nacionais entronizaram a cautela como critério fundamental de gestão financeira. Exemplo disso: os cinco maiores bancos do país elevaram em 7 bilhões de reais as provisões adicionais para créditos duvidosos no último trimestre do ano passado. Já nos Estados Unidos, o nível de empréstimos concedidos pelos bancos continuou crescendo mesmo quando a inadimplência dava sinais de que poderia sair do controle. Bancos sólidos, num mundo em que o sistema financeiro derrete, representam um diferencial importante. Outro diferencial, não menos vital, é que os derivativos, instrumentos financeiros que saíram de controle em Wall Street, destruindo bancos de investimento centenários, no Brasil são liquidados em bolsa (na BM&F), o que assegura controle e ajustes adequados.
China Photos/Getty Images | LÁ FORA A CRISE É FEIA Em feira de emprego, chineses apresentam suas credenciais na tentativa de encontrar trabalho: desemprego em alta no mundo inteiro |
3 AUSÊNCIA DE BOLHAS DE CRÉDITO E IMOBILIÁRIA, COM POTENCIAL DE CRESCIMENTO REAL DESSES SETORES
A situação financeira das famílias e da maioria das empresas brasileiras permanece sob controle. Não houve aqui o mesmo processo de formação de bolhas de crédito que volatilizou a economia de países como a Islândia, a Irlanda, a Hungria, a Inglaterra e, sobretudo, os Estados Unidos. O Brasil nem chegou perto de experimentar um boom imobiliário. "O país acabou tendo a sorte de ter chegado atrasado à forte expansão do crédito internacional", diz Claudio Haddad, presidente da escola de negócios Ibmec em São Paulo. "A única bolha que tivemos foi a da Bovespa, já desinflada." O total de crédito disponível hoje na economia brasileira equivale a 40% do PIB, um volume muito inferior àquele observado em nações desenvolvidas e até mesmo em boa parte das emergentes. Nos Estados Unidos, país que gestou os maiores excessos financeiros da história, a relação crédito-PIB é o sêxtuplo da brasileira (veja o quadro ao lado). Para o economista José Júlio Senna, no entanto, essa atual "vantagem" da economia brasileira também decorre de mazelas estruturais. Diz Senna: "A baixa alavancagem de empresas e das famílias se deve em grande parte a deficiências de nosso sistema econômico. Exemplos: juros muito elevados, excesso de tributação de operações financeiras e direcionamento artificial do crédito para setores considerados prioritários". Para o economista Edmar Bacha, esses são alguns dos vícios que paradoxal e momentaneamente se transformaram em virtudes. "Em uma situação de normalidade, eles precisarão ser atacados com reformas". Bacha refere-se ao sistema bancário concentrado e com alta participação de letárgicos bancos públicos, às taxas de juros elevadas e aos compulsórios extravagantes".
4 MERCADO INTERNO FORTE, CRESCENDO EM PODER DE COMPRA E EM PROPORÇÃO DA POPULAÇÃO
Com o declínio da pobreza, a chamada classe C (renda familiar entre 1.115 e 4.807 reais mensais) representa a maior parte da população brasileira e continua virtualmente imune à crise. É a nova classe dominante do país, formada por consumidores emergentes. O potencial de expansão é enorme. Ao lado da China e da Índia, o Brasil é um dos poucos países com parcelas significativas de sua população ainda não incorporadas ao mercado de consumo. Trata-se de um fator essencial na atração de investimentos. Segundo estudo coordenado por Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas, o processo de diminuição da miséria prosseguiu em 2008, mesmo depois do agravamento da crise – ou seja, o mercado consumidor do país continuou a se expandir. Contribuem para isso a inflação sob controle e as políticas assistencialistas. "Se o pacote habitacional para a baixa renda sair do papel, a classe C sairá ganhando ainda mais", afirma André Torrettá, diretor da Ponte Estratégia, empresa especializada em marketing para classes baixas.
Marcia Ribeiro/Folha Imagem |
ÂNCORA VERDE Feira de máquinas agrícolas: mesmo com a crise, a exportação de comida trará pelo menos 50 bilhões de dólares em divisas para o país |
5 MATRIZ ENERGÉTICA MAIS "VERDE" DO MUNDO, COM INDEPENDÊNCIA DO PETRÓLEO IMPORTADO
Metade dos combustíveis utilizados pela economia brasileira é originária de fontes renováveis, como a energia hidráulica e o etanol de cana-de-açúcar. O Brasil conta ainda com enorme potencial hídrico a ser explorado na Região Norte. Essas fontes renováveis não poluem o meio ambiente, são mais baratas e compatíveis com uma economia moderna e sustentável. "O Brasil é um dos poucos países que combinam recursos hidráulicos, domínio da tecnologia da energia renovável e tem agora a benesse das megarreservas do pré-sal, que só dependem de uma atualização do marco regulatório para atrair a participação mais intensa do setor privado", afirma Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas. A descoberta das reservas de pré-sal, a 6 000 metros de profundidade, além de consolidar a autossuficiência do petróleo (que, a rigor, ainda não chegou), transforma o Brasil em exportador de petróleo.
6 ESTABILIDADE POLÍTICA, EM QUE A DEMOCRACIA FOI ENTRONIZADA COMO PATRIMÔNIO NACIONAL
A previsibilidade econômica de um país, alicerce primordial do desenvolvimento duradouro, começa pela previsibilidade política. Esses dois pilares distinguem fundamentalmente o Brasil de países-problema como a Venezuela de Hugo Chávez, que rasgou contratos e afugentou o capital externo. Diz Carlos Langoni, da FGV: "Há uma percepção, não apenas interna como do ponto de vista dos investidores internacionais, de que a democracia brasileira está consolidada. Esse será o grande legado do governo Lula. Independentemente de quem for eleito presidente, não haverá mudanças traumáticas na política econômica, e sim um processo gradual de modernização institucional e implementação de reformas básicas, entre elas a tributária, a previdenciária e a trabalhista". A rigor, as mudanças vieram antes de Lula e foram mantidas em seu governo. O Brasil de hoje é resultado de um processo ocorrido nos últimos quinze anos, em que se estabeleceram no país poderosas restrições culturais e institucionais ao populismo.
7 ESTABILIDADE ECONÔMICA E ARCABOUÇO REGULATÓRIO IMPERFEITO MAS PREVISÍVEL
Pode parecer banal receber de troco uma moeda de 10 centavos cunhada em 1994, o ano do lançamento do Plano Real. Mas isso é indicador da maturidade de um país que, entre 1986 e 1994, teve quatro moedas diferentes. Hoje o Brasil funciona seguindo as regras de um arcabouço que, mesmo imperfeito, é previsível. O país acaba de completar dez anos sob o mesmo regime de câmbio flutuante e metas de inflação. Esses instrumentos, aliados às metas de superávits primários, asseguram a previsibilidade da gestão econômica, requisito essencial à atração de investimentos produtivos – o fator que determina o potencial de crescimento de um país. "A evolução que o Brasil teve desde meados dos anos 80 e a corajosa decisão de Lula de manter a política econômica do governo anterior colocaram o país em posição privilegiada neste momento. Quanto mais tempo o Brasil passar sem retrocessos significativos na gestão da economia, menor será o risco de sofrermos um estrago", afirma Maílson da Nóbrega.
8 MAIOR EXPORTADOR DE ALIMENTOS DO MUNDO, O QUE GARANTE VENDAS EXTERNAS VOLUMOSAS EM QUALQUER CENÁRIO
Em tempos de crise, as famílias tendem a reduzir a compra de bens duráveis, mais dependentes de crédito, como carros e eletroeletrônicos. E aumentam – ou ao menos mantêm – o consumo de produtos básicos, como alimentos. Existe uma explicação simples para isso: as pessoas não vão deixar de comer. Portanto, ainda que se verifique uma redução nas cotações das mercadorias exportadas pelo país, a venda de comida (soja e carne, principalmente) trará neste ano pelo menos 50 bilhões de dólares em divisas para o país. O Brasil tem a maior fronteira agrícola do mundo – isso sem avançar um centímetro na Floresta Amazônica. São 355 milhões de hectares aráveis, dos quais apenas 20% são utilizados para plantações. Essas áreas equivalem a dez vezes o território da Alemanha ou 12% das terras que ainda podem ser ocupadas com a agricultura em todo o planeta. Um estudo do Ministério da Agricultura, divulgado na última sexta-feira, aposta em um "grande potencial de crescimento" do agronegócio nacional nos próximos anos. O entusiasmo do governo se justifica pela necessidade de reposição de estoques em um mundo que terá consumo crescente de produtos agrícolas.
9 MERCADO EXTERNO DIVERSIFICADO COM COMPRADORES EM TODO O MUNDO E MERCADORIAS DE VALOR AGREGADO CRESCENTE
As empresas exportadoras brasileiras vendem seus produtos para o mundo inteiro, o que as protege e ao país dos efeitos mais violentos de uma crise, como a atual, que se mostra mais intensa nos mercados americano e europeu. A título de comparação, cerca de 80% das exportações do México destinam-se aos Estados Unidos. Calcula-se que 20% do PIB mexicano dependa dos humores do vizinho do norte, hoje em recessão. Já o Brasil direciona apenas um sétimo de suas exportações ao mercado americano – o equivalente a 2% de seu PIB. A clientela dos produtos nacionais está relativamente bem distribuída, como ilustra o quadro ao lado. Uma ressalva necessária: a diversificação reduz os efeitos do contágio externo, mas, é claro, não impede que o país sofra os efeitos de um inverno nuclear no comércio externo. Diz a economista Eliana Cardoso, professora da FGV: "Temos uma pauta diversificada tanto em produtos quanto em compradores, e isso nos dá algum grau de flexibilidade. Contudo, isso não será suficiente para compensar as perdas com o recuo generalizado da demanda mundial".
Nicholas Roberts/AFP | COMÉRCIO PRÊT-À-PORTER Desfile de coleção brasileira de biquínis em Nova York: exportações diversificadas reduzem o contágio internacional |
10 AS MESMAS PROJEÇÕES QUE APONTAM ESTAGNAÇÃO NO MUNDO ESTIMAM CRESCIMENTO DO PIB DO BRASIL EM 2009
A economia brasileira cresceu em uma velocidade superior a 5% nos últimos dois anos, batendo a média mundial – algo que não ocorria havia mais de duas décadas. Em 2009, apesar da forte desaceleração, o país conseguirá ao menos se consolar com a proeza de, por mais um ano, avançar mais rápido que o mundo. Não é pouca coisa para um país que na década de 90 era o primeiro a ser cuspido para fora do vagão quando o trem mundial brecava de repente. A expectativa é que o Brasil cresça em torno de 1,5%, contra projeções de uma sombria estagnação, de 0,5%, na média mundial. Na semana passada, a vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe, Pamela Cox, afirmou que o Brasil e o Chile serão os países que menos sentirão os efeitos da crise financeira na região. Nesse sentido, um relatório da OCDE (organização que congrega os países mais industrializados do mundo) indicou que a maioria das economias analisadas sofrerá uma "forte desaceleração" – a mais intensa desde a crise do petróleo, há três décadas –, mas o Brasil é o único em que, ao menos até o momento, a freada não mereceu a classificação de "forte".
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E a razão para se preocupar
O Brasil foi o terceiro país latino-americano que mais
aumentou os gastos públicos entre 2002 e 2007, atrás
apenas de Cuba e da Venezuela. Problema: grande
parte desses gastos é de péssima qualidade
Apu Gomes/Folha Imagem |
VOO INCERTO |
Economistas de diversas correntes foram unânimes em afirmar que, em tempos de crise, contas públicas equilibradas e confiança na condução da política fiscal ajudariam a pôr em prática outra arma para estimular a economia: uma redução mais acentuada da taxa de juros. Segundo um estudo da MB Associados, o Brasil foi o terceiro país latino-americano que mais aumentou os gastos públicos de 2002 a 2007, ficando atrás apenas de Cuba e da Venezuela. O descontrole dos gastos de péssima qualidade proliferou. Os dispêndios com pessoal e encargos sociais passaram de 98,9 bilhões (valor atualizado pela inflação) para 130,8 bilhões de reais entre 2003 e 2008. O Brasil gasta em excesso e mal, e o espaço para ajustes é pequeno. Esse descontrole dos gastos públicos de péssima qualidade, em detrimento dos investimentos, tornou-se a principal vulnerabilidade do país. É nosso calcanhar-de-aquiles.
"É ridículo o volume dos investimentos públicos. Despesas correntes, em especial com o funcionalismo, deveriam virar investimento. E a carga tributária deveria ser reduzida substancialmente", diz José Júlio Senna. Segundo Eliana Cardoso, professora da FGV, o Brasil fica com margem de ação muito reduzida: "O que o governo pode fazer agora é criar a confiança de que não vai fazer nenhuma besteira na área fiscal, para dar ao Banco Central margem suficiente para reduzir mais aceleradamente os juros". Ouvido por VEJA, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, diz que não há motivo para preocupações. Segundo ele, o déficit nominal do governo é de apenas 1,07% do PIB, inferior ao da média dos mercados emergentes. Ele reconhece que a arrecadação vai piorar, como resultado da redução da atividade. "Mas nossa situação fiscal é sólida."