Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 21, 2009

Presídios administrados pela iniciativa privada

Segurança
Nem parece presídio

O Brasil terá as primeiras prisões construídas e
administradas pela iniciativa privada. O modelo é
eficiente, como demonstram os presídios terceirizados


Diogo Schelp

Fotos Manoel Marques

SERVIÇO COMPLETO
Com as mãos e os pés algemados, preso é atendido por dentista
na Penitenciária Industrial de Joinville (à esq.), sob gestão privada.
O consultório foi montado com dinheiro do trabalho dos detentos


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Os presídios brasileiros, habitados por
450 000 sentenciados, têm cheiro de creolina. O produto químico é usado para disfarçar outro odor, o de esgoto, que sai das celas imundas e impregna corredores e pátios. O exemplo mais repugnante é o Presídio Central de Porto Alegre, considerado o pior do país – o que, convenhamos, é um feito e tanto. Num de seus pavilhões, as celas não têm sequer portas: elas caíram de podres. No extremo oposto, figura a Penitenciária Industrial de Joinville, em Santa Catarina. Ela não cheira a prisão brasileira. Os pavilhões são limpos, não há superlotação e o ar é salubre, pois os presos são proibidos até de fumar. Muitos deles trabalham, e um quarto de seu salário é usado para melhorar as instalações do estabelecimento. Nada que lembre o espetáculo de horrores que se vê nas outras carceragens, onde a maioria dos presos vive espremida em condições sub-humanas, boa parte faz o que quer e os chefões continuam a comandar o crime nas ruas a partir de seus celulares. A penitenciária catarinense é uma das onze unidades terceirizadas existentes no Brasil. Funciona assim: a empresa privada recebe do estado a tarefa de administrar o presídio, o que inclui fazer a segurança interna e prestar serviços básicos aos detentos, como alimentação, vestuário e atendimento médico. Ao estado cabe fiscalizar o trabalho da empresa, fazer o policiamento nas muralhas e decidir sobre como lidar com a indisciplina dos detentos. O resultado tem sido tão positivo que os governos de Pernambuco e Minas Gerais resolveram dar um passo além e criar as primeiras Parcerias Público-Privadas (PPPs) do sistema prisional. Em Pernambuco, a construção do Centro Integrado de Ressocialização de Itaquitinga, um complexo penal com capacidade para 3 126 presos, está prevista para começar em abril e custará 263 milhões de reais. O complexo penal em Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, com 3 000 vagas, está na última fase de licitação.

Ao contrário da terceirização, em que a iniciativa privada recebe a prisão a ser administrada, na PPP a empresa parceira tem de construir o presídio do zero com recursos próprios ou financiados. O custo da obra é ressarcido aos poucos à iniciativa privada, diluído nas mensalidades que o estado paga pelo serviço de gestão do presídio. "Uma das vantagens do modelo é que o poder público não precisa fazer um grande investimento inicial em infraestrutura", diz Ângelo Roncalli de Ramos Barros, secretário de Justiça do Espírito Santo. O desempenho dos dois presídios terceirizados do estado (um terceiro está em fase de licitação), que nunca tiveram superlotação nem rebeliões, levou o governo do Espírito Santo a estudar a possibilidade de também adotar PPPs em suas prisões. Entre os fatores que explicam a eficiência da gestão privada, o principal é o fato de os empresários terem um motivo bastante objetivo para prestar um bom serviço aos presos e, ao mesmo tempo, manter a disciplina no presídio: proteger o próprio bolso. "Os prejuízos causados por uma rebelião, por exemplo, são pagos pela empresa – e comida boa e assistência jurídica eficiente são alguns dos elementos capazes de manter os condenados tranquilos", diz Sandro Cabral, professor de administração da Universidade Federal da Bahia e autor de uma tese de doutorado sobre os aspectos econômicos da terceirização prisional. A empresa também pode perder a concessão do presídio caso não cumpra com alguns requisitos, como evitar fugas. Isso estimula os cuidados com a segurança e aumenta o esforço na revista dos visitantes, para coibir a entrada de celulares e armas. No Conjunto Penal de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, por exemplo, os familiares e amigos não podem levar comida – o tradicional "jumbo" – aos presos. Em outras penitenciárias baianas, há casos de mães que chegam no dia da visita com um panelão de caruru, esconderijo perfeito para um revólver ou saquinhos com droga. Outra vantagem da terceirização é a agilidade com que os agentes penitenciários podem ser demitidos, caso sejam suspeitos de corrupção. Se fossem funcionários públicos, o processo demoraria mais de dois anos.

Fotos Manoel Marques e Daniel Marenco/Ag. RBS
CONTRASTE À esquerda , pátio de prisão terceirizada em Lauro de Freitas, na Bahia. À direita, cela em ruínas do Presídio Central de Porto Alegre, o pior do país, onde há 4 800 presos para 1 500 vagas

O argumento mais sério contra a terceirização e, por consequência, contra as PPPs em presídios é a aparente inconstitucionalidade de entregar à iniciativa privada o papel de aplicar a pena a um condenado. O argumento nesse sentido é que, como se trata de uma atribuição do estado, seria impróprio contratar agentes particulares para fazê-lo. "Funções como essas devem ser exercidas por funcionários públicos porque, por lei, exige-se deles um comprometimento maior com sua atividade", diz Sérgio Salomão Shecaira, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, subordinado ao Ministério da Justiça. Como a lei não proíbe textualmente a terceirização, no entanto, as interpretações variam. No entendimento de alguns juristas, a administração privada é constitucional, desde que os agentes penitenciários trabalhem sob as ordens de uma autoridade estatal. Assim, o estado não abdica de seu monopólio do uso da força. "O agente privado pode até ter a chave do cadeado, mas todas as decisões em relação ao preso são tomadas por um juiz ou, em menor escala, pelo diretor do presídio", diz a promotora de Justiça de São Paulo Deborah Kelly Affonso, autora de uma dissertação de mestrado sobre o assunto. Por essa razão, nas penitenciárias terceirizadas costumam trabalhar três ou mais funcionários públicos, em geral diretores e chefes de segurança, cuja obrigação é controlar e fiscalizar a atuação da empresa concessionária e de seus empregados. "Quando um preso age com indisciplina, cabe a nós, representantes do estado, decidir se é o caso de mandá-lo para a solitária", exemplifica o policial militar Richard Harrison Chagas dos Santos, diretor da penitenciária de Joinville. Esse modelo, que será mantido nas PPPs de Pernambuco e Minas Gerais, é semelhante ao da França, onde quase 15% dos presídios são administrados em conjunto por estado e iniciativa privada. Nos Estados Unidos, o modelo é mais radical. Todos os funcionários são da concessionária, inclusive os diretores, e os prédios não pertencem ao governo, nem serão repassados à esfera pública no fim do contrato. Do total de presos americanos, 7% estão sob a guarda de empresas privadas. Parece pouco, mas equivale a uma população de mais de
100 000 pessoas.

A tendência de terceirização foi revertida em dois estados brasileiros. No Ceará, a Justiça determinou o fim da gestão privada de três presídios, por causa de irregularidades nos contratos. No Paraná, seis prisões também foram retomadas pelo estado, em 2006, mas por uma idiossincrasia. "O governador resolveu, simplesmente, que o Paraná não deveria ter nada terceirizado", diz o secretário de Justiça, Jair Ramos Braga. Ele garante que as condições nos presídios até melhoraram depois que voltaram para a mão do estado – pioneiro, em 1999, na terceirização carcerária. A realidade, no entanto, mostra que dificilmente o sistema público consegue ser mais eficiente. As diferenças são superlativas. Vizinho à Penitenciária Industrial de Joinville, há um presídio público. Lá, as visitas íntimas acontecem dentro das celas superlotadas. A penitenciária ao lado, terceirizada, dispõe de dez quartos específicos para os presos receberem suas mulheres, com banheiro, chuveiro quente, ventilador, rádio e total privacidade. Costuma-se dizer que o sistema prisional brasileiro é uma faculdade do crime: os detentos saem de lá piores do que entram. Quando se consegue impor disciplina e dar condições básicas, como estudo e trabalho, os condenados têm ao menos uma chance de escolher seu rumo ao voltar à sociedade.

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