...mas sem nenhum significado. Assim é Watchmen, um marco do narcisismo cinematográfico: um filme tão saciado com a própria beleza que nem se lembra de que é preciso manifestar alguma emoção
Isabela Boscov
Divulgação |
HERÓIS EM DESGRAÇA Wilson, como Coruja, Malin Akerman, como Espectral, e Haley, como Rorschach: figuras cheias de melancolia |
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A sequência de abertura de Watchmen (Estados Unidos, 2009), que estreia nesta sexta-feira no país, é algo verdadeiramente memorável: uma série de dioramas animados por atores de carne e osso que, ao som de The Times They Are A-Changin’, de Bob Dylan, narra a ascensão e o declínio de um grupo de justiceiros que, nos anos 40, meio por farra, meio por convicção, inventou personas e fantasias e se juntou para combater o crime – e então, no correr dos anos e das transformações pelas quais os Estados Unidos iam passando, começou a ser identificado com o fascismo parapolicial e, finalmente, terminou por ser tornado ilegal pelo governo de Richard Nixon (que, neste universo paralelo, nunca renunciou e está já em seu quinto mandato consecutivo). São imagens ao mesmo tempo belíssimas e melancólicas, que, sublinhadas pela canção de Dylan, evocam um dos aspectos mais vertiginosos da vida americana: a euforia do auge e a humilhação da queda em desgraça. Essas, entretanto, estão entre as poucas emoções que Watchmen é capaz de despertar em suas quase três horas de duração. E, toda vez que algum sentimento desponta, a coincidência se repete: alguma música icônica e carregada de significado está acompanhando a cena. O que, em outras palavras, quer dizer que Watchmen não tem muita coisa dentro de si. Dirigido por Zack Snyder, de 300, ele é o equivalente cinematográfico de um narcisista: uma criatura tão envolvida consigo mesma e tão saciada pela própria beleza que não lhe ocorre que não basta apenas existir, mas que é preciso também tentar alcançar as pessoas convocadas a apreciá-la.
Lançada nos anos 80 por Dave Gibbons e Alan Moore (que, como em V de Vingança, exigiu por questão de princípio que seu nome não constasse dos créditos do filme), a graphic novel Watchmen é considerada o padrão-ouro do gênero, o quadrinho que todos os outros quadrinhos aspiram a ser. Como sempre no trabalho de Moore, ela tem um subtexto político que é ao mesmo tempo ingênuo e feroz na sua disposição de denunciar as infinitas variantes de embriaguez que o poder oferece. Mas Watchmen tem algo mais: um entendimento delicado e até compassivo do mal-estar de alma que ter ou perder esse poder acarreta, e que seus personagens ilustram de várias maneiras – da impotência sexual do Coruja (Patrick Wilson) e da obsessão por vingança de Rorschach (Jackie Earle Haley) à distância cada vez maior que o superpoderoso Dr. Manhattan (Billy Crudup) põe entre si e a humanidade e à venalidade do Comediante (Jeffrey Dean Morgan), cujo assassinato serve de estopim para a trama.
Zack Snyder segue de muito perto tanto as situações descritas por Moore como essa tristeza dos protagonistas. O que ele não consegue é exprimi-la: no seu empenho em traduzir o quadrinho em imagens que só poderiam existir no cinema e em nenhum outro meio visual, Snyder cerca esse centro emotivo da história com tanto som e fúria que o obscurece por completo. Assim, mesmo atores fortes como Patrick Wilson e Billy Crudup ficam pequenos e fora de escala nesse tableau gigantesco; e, quando a violência irrompe, ela não transmite ferocidade – parece apenas gratuita e quase pornográfica, uma espécie de tranco com que tirar a plateia da apatia induzida pelo excesso de enredo e falta do que comunicar com ele. Watchmen parece, portanto, destinado a se tornar um marco: um marco tanto na sua estupenda concepção visual e de linguagem, como da esterilidade para a qual uma certa vertente do cinema americano vai caminhando. Como o Dr. Manhattan, este é um filme imensamente poderoso e impressionante – e que mal consegue se lembrar do que é ser humano. Trailer |