Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 20, 2008

Navegação difícil Boris Fausto


Duas linhas de interpretação, com as respectivas nuances, desenham-se numa questão que está na ordem do dia entre nós: a das escutas telefônicas e outras formas de quebra da privacidade. Uma dessas linhas é a daqueles que vêem as escutas ilegais como prova de que vivemos num Estado policial, ou pelo menos policialesco, em que o Grande Irmão se tornou figura central, nada escapando a seu olhar inquisidor.

Os integrantes dessa visão, por razões ideológicas respeitáveis e até certo ponto compreensíveis razões de interesse, situam-se, sobretudo, nos círculos que dão à defesa dos direitos individuais um sentido muito amplo, como é o caso de alguns membros da cúpula do Poder Judiciário, de entidades de classe como a OAB e de advogados prestigiosos - os criminalistas figurando em primeiro lugar.

Os defensores da outra linha de interpretação afirmam, ou pelo menos deixam entrever, que o "preciosismo legal" vem tolhendo o combate à corrupção, exatamente no momento em que, no mar agitado de nossa vida social, a ação combativa começou a alcançar não apenas lambaris, ou peixes de porte médio, mas o que outrora se chamava de tubarões. Os integrantes dessa corrente situam-se no Ministério Público, na Polícia Federal e numa parcela ponderável de juízes, sobretudo primeira instância, e em círculos de esquerda que transcendem os limites do PT, se é que essa etiqueta ainda se aplica ao partido do governo.

Vê-se, pois, que, de um lado e de outro, os contingentes que se movimentam em torno da temática das escutas, do combate à corrupção, da garantia das liberdades fundamentais pertencem a um círculo profissional relativamente estreito, cujo universo gira em torno seja do combate à criminalidade, seja da interpretação e aplicação das normas do sistema legal. Diga-se de passagem que as discordâncias aí existentes não refletem, a meu ver, um desmoronamento institucional, mas sim percepções contrastantes, que têm que ver com fatores vários, como a complexidade dos temas em jogo, a existência de uma carreira policial prestigiosa no nível federal e a emergência de novas gerações nas carreiras jurídicas.

Ingressando num terreno conjectural, seria de indagar como reagem aos dilemas do momento os cidadãos que constituem a chamada opinião pública e aqueles, também cidadãos, representativos da imensa maioria da população. Arrisco dizer que, enquanto a opinião pública se divide em torno da ênfase na legalidade ou na ênfase ao combate à corrupção, a grande maioria assiste aborrecida, ou indiferente, ao que lhe parece ser uma novela cujos últimos capítulos são o caso Daniel Dantas e os grampos dos telefones de figuras importantes da República. O ceticismo popular tem que ver com o fato de que muitas outras "novelas" se arrastam por aí sem desfecho, enquanto outras desapareceram de cena. Afora o fato de que o homem e a mulher do povo hão de pensar que essa história de grampos não é com ele ou com ela, e sim coisa de gente graúda, que sempre tem algo a esconder.

Sem pretender dar lições, considero estarmos no curso de uma navegação difícil, em que excessos de ênfase, numa ou noutra posição, são negativos. Hoje, tornou-se claro aquilo que há pouco tempo era apenas um rumor: a ampliação desmedida e descontrolada de escutas e interferências de todo tipo na comunicação entre as pessoas por parte de órgãos como a Abin, a Polícia Federal ou franco-atiradores de menor calibre. Os detalhes, a repartição de responsabilidades são objeto de uma investigação muitas vezes indecifrável, mas a constatação geral é essa.

Não creio, porém, que o descontrole das escutas, cuja gravidade é gritante, signifique que o Brasil se converteu num Estado policial, ou policialesco. O próprio debate acalorado e as medidas legislativas propostas, no sentido de regular as hipóteses e as formalidades para se autorizar a quebra de sigilo das comunicações, mostram que não estamos à beira de um regime de exceção.

Por outro lado, na outra vertente, bem conhecemos os riscos da tolerância com a ilegalidade, em nome de um objetivo maior. As ilusões e desilusões com regimes de exceção de todo tipo nos ensinaram que os fins não justificam os meios, mesmo porque meios e fins estão entrelaçados. Mas essa constatação não exclui o fato de que, nos dias de hoje, o aparato material e os recursos legais de que dispõem, por exemplo, quadrilhas especializadas no tráfico de drogas, ou réus dotados de grande poder econômico, são de tal ordem que é inútil enfrentá-los com instrumentos de investigação precários e com base numa legislação e numa hermenêutica, sob vários aspectos, contrastante com a realidade social. Esta última circunstância acaba, muitas vezes, resultando na impunidade de autores de crimes de reconhecida gravidade, só suscetíveis de prisão depois do trânsito em julgado do último de inúmeros recursos. É preciso ter em conta também que, dada a complexidade e a importância que o sistema financeiro assumiu nas atividades econômicas, faz todo o sentido a especialização de juízes no conhecimento dos meandros desse sistema, apesar das muitas críticas às varas federais especializadas.

Em resumo, se o preço da liberdade é a eterna vigilância, como os udenistas diziam no passado, não é menos certo que o problema da criminalidade se tornou extremamente grave, a ponto de o Brasil, com suas especificidades, estar a caminho de um quadro como o do México ou da Colômbia, no ritmo em que as coisas vão. Garantir a ordem democrática e, ao mesmo tempo, combater o mundo submerso, de colarinho branco ou sem colarinho, é tarefa que exige uma navegação difícil, cheia de riscos, mas não impossível.

Boris Fausto, historiador, é presidente do conselho acadêmico do Gacint (USP) e autor, entre outros, de História do Brasil (Edusp)

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