Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 14, 2008

Muito controle e pouca ordem Gaudêncio Torquato


"Quid custodiat custodes?" A pergunta, que desde a Roma antiga anima a polêmica entre atores políticos e cientistas sociais, bate com força na porta das instituições brasileiras no momento em que a inviolabilidade da vida privada assume proporções ameaçadoras com a onda de interceptações telefônicas, sejam as concedidas por magistrados como as escutas ilegais, a cargo de agentes infiltrados nas estruturas de controle. "Quem controla os controladores?" O Conselho Nacional de Justiça, que age como controlador do Poder Judiciário - por exercer a função de fiscalização administrativa, financeira e correicional -, propõe mais uma resposta à questão ao criar, dentro de sua estrutura, uma central de registro de grampos. O conselho pretende dar um basta às excessivas gravações legais de conversas telefônicas. Se o grampômetro pode servir como alerta aos juízes, contribuindo para diminuir a quantidade de escutas autorizadas, é pouco provável que seja capaz de cortar os braços da criminalidade, que se infiltram nos corpos dispersos de controle do Estado, a comprovar a denúncia de Norberto Bobbio de que a eliminação do poder invisível é uma das promessas mais luminosas e não cumpridas pela democracia.

No caso brasileiro, há razões múltiplas para a extensão das redes criminosas que agem à sombra do Estado. Uma das fontes onde o poder oculto bebe água é a própria Constituição de 88. À primeira vista, a hipótese parece uma sandice, pela antinomia expressa nesta idéia: a Lei Maior, posicionada no mais elevado pedestal da Pátria, é grande responsável por mazelas, distorções e ilegalidades. Há lógica nisso? A Carta de 88, ao abrir o leque de direitos sociais e individuais, construiu as vigas institucionais com a argamassa da autonomia, liberdade e competência funcional. Sistemas e aparelhos se robusteceram para exercer com independência as funções constitucionais. O Estado liberal e o Estado social convergiram suas posições em direção ao Estado Democrático de Direito, sob o qual o Poder Judiciário assume posição de relevo, fato que explica seu papel preponderante na pavimentação da via democrática. Observações de teor crítico que se fazem à judicialização da política, bastante acirradas nos últimos tempos, precisam levar em consideração a ausência de legislação infraconstitucional, o que permitiu ao Judiciário entrar no vácuo legislativo e interpretar as normas de comando.

Já outras instituições do Estado, voltadas para a defesa do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais, ganharam formidável impulso. O Ministério Público, por exemplo, alçado à condição de instituição essencial à função jurisdicional do Estado e com acrescida bagagem normativa, passou a incorporar de maneira plena a missão de guardião maior da sociedade. Sua atuação, se, de um lado, ganhou o respeito dos cidadãos, passou a ser questionada em certos setores por excesso de zelo ou ações consideradas exageradas. A Polícia Federal, da mesma forma, reforçou a identidade como órgão encarregado de exercer a segurança pública para a preservação da ordem e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, passando a agir em parceria com instâncias do Judiciário. Sua extensa folha de serviços, alargada por um fluxo de maior profissionalismo, penetra nos espaços mais obscuros da vida criminosa e nos porões incrustados nas malhas da administração pública.

A par de sua contribuição para a consolidação dos pilares éticos e morais e a preservação das boas práticas políticas, ganhou uma legião de críticos e adversários, por conta de operações espetaculosas, marcadas por nomes simbólicos. Mais uma vez, o pano de fundo é a Constituição de 88, que propiciou ao aparelho do Estado a competência para organizar estruturas e métodos capazes de garantir a sua segurança e alcançar o equilíbrio social. Às ações do Ministério Público e da Polícia Federal se somam tarefas de outros sistemas que também fazem apurações e controles, como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Corregedoria-Geral da União, além dos aparatos do Parlamento, como a Comissão Mista de Controle sobre Atividades de Inteligência e até as comissões parlamentares de inquérito. Ou seja, o Estado possui máquina mais que suficiente para monitorar as retas e curvas das pessoas físicas e jurídicas. E é nessas trilhas que a coisa começa a desandar. A pletora de instrumentos de controle abriu imensos vácuos. A política é como a natureza: procura preencher os vazios. As mesmas tarefas se repartiram entre alguns órgãos, espaços se bifurcaram e dirigentes foram atingidos pelo fogo das vaidades. Cada qual procurou chamar para si a atenção.

Se as ferramentas a serviço do Estado fossem desprovidas de sentimentos - civismo, crenças, engajamento partidário -, teríamos gigantesca estrutura de controles comprometida com o bem comum. Coisa difícil entre nós. O bem da coletividade passa pela filtragem personalista. Somos um país que privilegia a marca pessoal. A ação da entidade é sempre precedida pela louvação do dirigente. Fulanos e sicranos dão o tom da política e da administração pública, imprimindo à orquestra o seu compasso. Alas e grupos se formam no interior de estruturas, matizes políticos dão o tom de operações e a algazarra do espetáculo acende altas fogueiras. A querela se espalha pela teia dos Poderes.

O que fazer com a massa contenciosa que agita atores e instituições?

A resposta aponta para a obviedade: cumprir o dever nos limites prescritos pela lei, despir-se de vaidades, usar o bom senso para evitar duplicação de tarefas e, por fim, profissionalizar as estruturas, deixando-as imunes aos partidarismos. Os Poderes, por sua vez, deveriam ocupar os espaços que lhes cabem. Sem mais nem menos. Se para cada excesso cometido for criado um novo controlador para comandar o já existente, o País andará em círculos. Para gáudio da bandidagem.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

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