Quase lá
sinopse
Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
Cleusa (Sandra Corveloni, premiada em Cannes por sua personagem forte e ambígua) é mãe de quatro rapazes, grávida do quinto, diarista e corintiana. Como em tantas casas neste País, ela cria sozinha Dênis, Dario, Dinho e Reginaldo. Dênis, motoboy, pai de uma menina criada pela jovem mãe - mais uma vez, como em tantas casas -, vai se envolver com o crime. Dario participa de peneiras para ser jogador de futebol, chegando a adulterar documento para esconder que tem 18 anos. Dinho, frentista de posto, é evangélico, lutando para conter seus impulsos. Reginaldo, o caçula, solitário como tantos caçulas, tem pele mais escura do que os irmãos por ser de outro pai.
A narrativa simultânea das cinco histórias é o grande vigor do filme. O roteiro bem calibrado nos apresenta os personagens sem esquematismo e cria conflitos e reviravoltas que prendem a atenção. Mais do que isso: a partir da metade ficamos mais apreensivos, ansiosos com o que acontecerá. A explosão de Dinho e os riscos de Dênis são filmados sem apelo, mostrando como é forte a tentação do crime. As seqüências de futebol - Dario dividido entre fazer o golaço individualista e mostrar solidariedade para contentar os olheiros - estão, numa câmera baixa à la Canal 100, entre as melhores do cinema brasileiro. E a atuação do menino Kaíque Jesus Santos tem carisma e talento de sobra.
No entanto, embora apolítico, Walter Salles não consegue deixar de fora a redução ideológica. Toda vez que aparece alguém de classe alta ou média no filme é para simbolizar o que há de ruim na sociedade brasileira. A juventude de condomínios droga o rapaz pobre e bate nele por jogar futebol melhor; os motoristas de importados atropelam os motoboys e apenas sentem medo deles, incapazes de olhá-los como pessoas; a intelectual não registra a empregada em carteira; o dono do posto de gasolina divide o mundo em bandido e "dotô". Todas essas situações são reais, até recorrentes no dia-a-dia? Individualmente, sim. Mas por que a esse bloco de personagens não é reservada semelhante variedade? Por que nenhum recebe nem meia dose de compreensão?
Isso quase dilui o fato de que o filme tem a qualidade de ser compreensivo em vez de complacente com os personagens pobres. Daí os problemas do desfecho. Ainda que não haja o final feliz explícito, pois tudo fica meio em suspenso, o sorriso e o exagero da última cena de Reginaldo não deixam dúvidas. Menos preconceito, egocentrismo e medo ajudariam; quem nega? Mas um filme tão habilidoso não precisava de um contraste tão esquemático.
De Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, gostei menos. É verdade que minhas restrições são mais à história de José Saramago. Prefiro o Saramago romancista histórico, de O Ano da Morte de Ricardo Reis e Memorial do Convento, embora ache Ensaio sobre a Cegueira o melhor de seus livros da fase "filosófica", em que seu discurso antimodernidade ganhou mais peso do que sua imaginação literária. Mas mesmo para o admirador do romance o filme pode parecer um tanto frio e, ao mesmo tempo, desintelectualizado.
Por ser uma espécie de distopia, de situação alegórica desde o início (e o livro tem melhor abertura do que desenvolvimento, ao contrário do filme), muitos acham que não se pode cobrar da narrativa que seja verossímil em passagens específicas. Engano. As melhores distopias, de H.G. Wells a William Golding, passando por Orwell ou Kafka, capricham no "make-believe", nos nexos críveis da história. E há muitos momentos em Ensaio sobre a Cegueira (livro e filme) em que não temos nada disso. É evidente, por exemplo, que a coisa mais importante que deve fazer a personagem de Julianne Moore - única que não perdeu a visão, mas precisa fingir que perdeu -, naquela clínica convertida em hospício-prisão, é tirar do inimigo (Gael García Bernal, que não consegue parecer do mal) a única arma de fogo, o que seria fácil.
Meirelles filma com uma fotografia leitosa, estourada, e consegue fazer de São Paulo o cenário perfeito para o Apocalipse segundo Saramago, mesmo que em suas ruas se fale japonês e inglês (exemplo de veracidade dispensável). Alguns atores estão muito bem, e as cenas do banho - que ingenuamente significam a necessidade do ser humano de redescobrir os prazeres simples, os confortos não-burgueses, etc., etc. - são bonitas. Tudo, porém, parece clichê de "cinema de autor", como se Meirelles procurasse o vértice oposto da ação veloz e violenta de Cidade de Deus.
Mesmo depois de tantas pesquisas com o público que o fizeram alterar bastante o filme, há muitos momentos mais longos do que deveriam ser (como os dedicados a personagens que depois desaparecem) e outros mais breves (há uma única cena em que a protagonista se comove às lágrimas com o drama alheio). A segunda metade do filme, em que os personagens vagam como zumbis por casa e comida, é menos convincente ainda, porque num cenário arrumadamente desarrumado. O livro pedia um filme mais sombrio - não nas cores, mas nos tons.
A ARTE DE EXPOR
Fui ver a bela retrospectiva de Beatriz Milhazes na Estação Pinacoteca. Ela encontrou uma sintaxe que faz a ponte entre os bordados populares, a natureza tropical e o grafite pop, com os círculos concêntricos de tamanhos diversos criando sensação de volume e movimento, a meio caminho entre figuração e abstração. É tudo que Leda Catunda um dia quis fazer. Mas há um limite no trabalho, que fica perto demais do repetitivo e do decorativo, e por isso mesmo acho mais interessante quando ela usa texturas rústicas e não as superfícies brilhantes.
RODAPÉ
Há algumas iniciativas do mercado editorial brasileiro que deixam perplexos os que só vêem o comodismo de reedições óbvias e best-sellers mundiais. Uma delas é o livraço Coleção Princesa Isabel, de Pedro e Bia Corrêa do Lago (editora Capivara), realmente um tesouro fotográfico do Brasil do século 19, com imagens de Klumb, Stahl, Leuzinger, Malta e outros grandes nomes. E o que dizer da série Arquivinhos, da editora Bem-Te-Vi, que agora lançou o número 4 em homenagem a Nelson Rodrigues? Trata-se de uma pasta com livretos, pôster, CD, fac-símiles de cartas inéditas para Otto Lara Resende, etc. Os textos são de Sábato Magaldi, Barbara Heliodora, Arnaldo Jabor e outros craques.
Ah, você quer algo mais convencional? Então compre o primeiro dos três volumes das Cartas de Antônio Vieira (editora Globo, org. João Lúcio de Azevedo), que alguns reputam como mais importantes que seus sermões. O estilo do imperador da língua portuguesa está ali; como ele diz, ao se surpreender com a inteligência dos índios, "tanto pode a graça sobre a natureza".
POR QUE NÃO ME UFANO
É irônico o espanto de articulistas locais com o que chamam erradamente de "estatização" dos bancos e seguradoras pelo governo americano. Quando o governo brasileiro fez o Proer, eles saíram de dedo em riste contra o uso de dinheiro do contribuinte para socorrer o sistema financeiro. Agora que o governo americano faz coisa parecida, o que eles dizem? "Está vendo, o livre mercado não existe, o intervencionismo é necessário..." E posam de profetas que teriam anunciado o fiasco da globalização neoliberal.
Primeiro, mostram desconhecimento da história dos EUA. Sempre que precisaram defender seus interesses, os republicanos entraram com verba pública pesada, a começar pelo setor militar que Reagan inchou até que a URSS falisse. Segundo, há uma diferença entre querer intervencionismo e querer regulação. Liberais de boa cepa sempre criticaram os anos Greenspan pela frouxidão no sistema de créditos, na maneira como olhou mais para a bolha digital do que para a imobiliária.
Terceiro, como escreveu o jornalista John Kay no Financial Times, "é fácil afirmar que a solução para qualquer fracasso de mercado é melhor regulação". É preciso aprimorar a regulação, dissociando liquidez e volatilidade ao exigir garantias mais sólidas - ativos mais consistentes - para financiar operações sofisticadas. Se qualquer financiadora pode especular com derivativos, o mercado infla; um dia, necessariamente, vai esvaziar. Mas não há agente público que dê conta de um sistema tão complexo e mutante.
O pior é ver Lula e seus ministros dizendo que vão aumentar os gastos públicos caso a crise atinja o crédito no Brasil. Ao mesmo tempo, os juros vão continuar subindo. Decididamente, este é o país dos sinais trocados.
Aforismos Sem Juízo
''Quem só cresce na adversidade esmorece na estabilidade.''
''Um filme tão habilidoso como Linha de Passe não precisava de um contraste tão esquemático''
''Há uma diferença entre querer intervencionismo e querer regulação do mercado''