Chorinho paulistano
Os comentários informais que escutei ou são sobre a campanha em si ("A do Kassab é a melhor"), mais do que sobre as propostas, ou são do tipo "no Rio a coisa está pior, com o Crivella liderando as pesquisas". Talvez o motivo seja o fato de que os três principais candidatos são manjados pelo público: um é o prefeito, a outra já foi prefeita e o outro já foi governador. É como se já houvesse a cobertura e o rateio do território das idéias - e apenas sobrassem dúvidas sobre a capacidade de pôr algumas em prática.
Kassab vende basicamente o Cidade Limpa, que botou ordem parcial nos letreiros de lojas e outdoors, embora a poluição visual vá muito além desses itens. A manutenção da cidade deixa a desejar em quase todos os serviços, como limpeza, tráfego e iluminação (foi a primeira coisa que reobservei ao chegar da China: como São Paulo está escura!). Kassab fala também das AMAs, mas não é bandeira comparável, já que saúde é o pior setor para os habitantes. O resto são as espetadas em Marta, como quando diz que eliminou as escolas de lata.
Marta investe no bilhete único e nos CEUs, mas achei curioso como agora reconhece defeitos naquilo que defendia ardorosamente na época - a começar pelas taxas como a do lixo, que só mandou nosso dinheiro para o lixo. Também me diverti ao ver que hoje a crítica aos CEUs por serem caros e não darem retorno educacional equivalente (se o aluno é mais caro, deve ir melhor nas avaliações do que os mais baratos) sai da boca de simpatizantes. Quem sabe ainda dê tempo de lembrar absurdos como o túnel sob a Faria Lima que privou o Largo da Batata de sua recuperação urbanística.
Marta devolve as espetadas em Kassab e ignora Alckmin espertamente. Alckmin se vende como governador, fala em metrô e Fatecs. Com esse repertório e uma embalagem anódina, não espanta que só tenha caído nas pesquisas. O erro, porém, estava lá atrás, mesmo que Alckmin venha a reverter toda essa situação; o erro foi o PSDB não entrar de vez com Kassab, ex-vice de Serra, confiando que no segundo turno a união daria conta de vencer a adversária. Como diria qualquer avó: se seria assim depois, por que não antes?
A vastíssima maioria dos cidadãos é capaz de votar em qualquer um dos três, de mudar daqui para lá sem se importar com qual partido. Como acontece em número cada vez maior de países, o candidato passa apenas uma imagem, uma simbologia, a mais genérica possível, e o eleitor vai de acordo com suas simpatias, no caso já relativamente consolidadas. Mas nem por isso é preciso ser um debate tão limitado a jingles, bordões e maquiagens em números (20 km de metrô, seu Geraldo?) e promessas (48 km de metrô, dona Marta?).
Quais as vocações de São Paulo que merecem reforço e quais não? Eis o tipo de questão que não é respondida nem mesmo em síntese. A sensação é que o DNA malufista-janista do poder à paulistana - obras viárias e campanhas "moralizadoras" - ainda não evoluiu, embora a cidade tenha se transformado muito, com novas camadas e demandas pouco mapeadas. Mesmo as coisas mais simples que observamos (por que só os pontos de ônibus dos corredores em avenidas são iluminados?) parecem destinadas a continuar como estão. A anestesia geral desta eleição e desta cidade assusta.
P.S. Por falar em campanhas, uma correção: José Serra quer proibir o fumo em todos os ambientes fechados. Não fumo, não gosto de ser fumante passivo e acho que as áreas para fumantes foram um enorme ganho. Mas condená-los a só fumar ao ar livre é quase o mesmo que proibi-los de fumar. E eu sou pela liberdade individual.
RODAPÉ (1)
Li no aeroporto de Dubai, na escala da longuíssima viagem de volta de Pequim, o admirável For You, novo livro de Ian McEwan, que não chega a 70 páginas e não precisa mais que isso. Ele o chama de "libreto", um texto para um musical que pode ser lido como uma peça curta e poética. Conta a história de um compositor mulherengo, Charles, que prepara a estréia de uma obra baseada no poema Aubade de Philip Larkin (que diz que a morte é como "a anestesia da qual ninguém volta"), enquanto sua mulher está doente e sua secretária polonesa o endeusa sem que ele perceba (se bem que esse negócio de fazer da polonesa a "femme fatale" parece coisa de puritano).
Com ecos de Shakespeare e T.S. Eliot, a peça termina em tom trágico, mas acima de tudo McEwan mostra que é hábil nos versos: "I know you suffer as much at least -/ We share the hunger before the feast" (tentando rimar: "Sei que o sofrimento é o que nos resta -/ Partilhamos a fome antes da festa").
RODAPÉ (2)
Ainda no capítulo das reedições ou novas traduções, é muito bom ver que os textos de Hölderlin sobre Sófocles foram publicados em Hölderlin e Sófocles (Jorge Zahar, tradução de Pedro Süssekind e Roberto Machado), com ensaio introdutório de Jean Baufret que consegue ser mais longo que eles. Hölderlin faz uma leitura idealista de Édipo e Antígona, de um idealismo mais kantiano que hegeliano, mas mesmo assim tipicamente romântica - ou seja, defendendo a tese de que o sofrimento e a solidão podem levar à purificação, ao contato com o divino. O curioso é como estava embutida aí a noção de que os alemães são por natureza sóbrios, estruturados, e portanto teriam de mergulhar no tumulto, no tormento, para chegar ao sublime - e o nazista Heidegger muito bebeu em Hölderlin. Acho que apenas Isaiah Berlin viu bem essa ligação entre romantismo e autoritarismo, ainda por ser esmiuçada.
RODAPÉ (3)
É um prazer ler ou reler os ensaios, poemas e artigos de Julio Cortázar nos segundos tomos de A Volta ao Dia em 80 Mundos e Último Round (Civilização Brasileira, tradução Ari Roitman e Paulina Wacht). Cortázar era um ensaísta livre, que, sem abandonar o foco argumentativo, misturava gêneros, criava metáforas e fazia associações entre temas diferentes, como música, cinema, política e comportamento - esse tipo de coisa que ainda irrita alguns brasileiros. Os melhores momentos são, claro, os textos sobre Louis Armstrong ("é como se Louis precisasse dizer adeus o tempo todo a essa música que cria e que se desfaz no mesmo instante") e Thelonious Monk ("a noite primitiva e delicada de Monk"), que parecem ter as mesmas frases longas e improvisadas do jazz; e a longa análise do romance Paradiso, de Lezama Lima, em que mostra como erros e obscuridades são, no caso, defeitos menores.
DE LA MUSIQUE
Vou à nova e bela Livraria da Vila no Shopping Cidade Jardim, do arquiteto Isay Weinfeld (a livraria e não o shopping, claro, que Isay jamais faria algo tão faraônico), e entre outras coisas compro o mais recente CD de Yamandu Costa, Tokyo Session. É extraordinário. Yamandu andou exagerando no virtuosismo, que é quando o intérprete se comporta como se fosse mais importante que a interpretação, mas agora está mais maduro e ao mesmo tempo - eis o segredo - mais técnico do que nunca. Isso é nítido em duas faixas consecutivas, a Modinha de Tom e Vinicius e Manhã de Carnaval de Luiz Bonfá.
Com duas canções dessa envergadura, Yamandu conseguiu criar uma terceira via entre a interpretação que desconstrói a melodia até que quase desapareça (como faz brilhantemente um Brad Mehldau) e a que se ocupa de detalhes, modulações, variações minimalistas (como João Gilberto ou, por outro meio, Rosa Passos). Sem jamais abandoná-la, ele a reinventa com alterações de tempo e volume - faz pausa, acelera, permite os ruídos da corda, depois acalma de novo - e com improvisos que soam como comentários, derivações da própria estrutura. O virtuose é um precoce de quem a maturidade cobra um preço adicional.
POR QUE NÃO ME UFANO
O PIB veio bom no segundo trimestre, a inflação desacelerou, mas o Banco Central aumentou os juros em 0,75 ponto. A balança piorou muito, ajudando o dólar a subir de R$ 1,8, e o governo como de costume gastou mais do que deveria. A partir de 2009 o efeito deve ser sentido. O cidadão que paga 160% de juros anuais no cheque especial - ainda a modalidade de crédito dominante - está endividado e o consumo pode esfriar. Enquanto o Brasil trabalhar com juros tão altos, em vez de combater os verdadeiros entraves à produtividade, os solavancos serão sua sina.