Terremotos recorrentes (parece castigo..., diz uma amiga...) no Japão;
mudanças políticas radicais, com direito a confronto político em forma
de tempestade de pedra no chamado mundo árabe; e transgressão
inclassificável no Brasil. Neste nosso país, onde os juristas de bela
tradição romana, aperfeiçoada na Faculdade de Direito de Coimbra que o
Marquês de Pombal queria destruir em nome das luzes, vivemos um gesto
que é a um só tempo crime, loucura, covardia, vingança e celebrizarão
patológica. Ou seja: é um ato irredutível que fala de múltiplas
carências coletivas, mas que se realizou, como tudo o que é humano,
individualmente. Num outro pedaço do mundo, a terra e os sistemas
políticos se sacodem; na nossa casa, estremecemos todos porque não
somos capazes de nos pensar também como ingratos, covardes, canalhas e
loucos varridos. Se Deus existe e, mais que isso, é brasileiro, o que
significa esse massacre insano de crianças num lugar sagrado: uma
escola? Debaixo de Deus, pensamos que uma lei vai conter esses gestos
insanos.
Ainda vivemos a plenitude daqueles etnocentrismos que garantem um país
tropical, sem preconceitos, repleto de santos, abençoado por Deus e
bonito por natureza. O insólito amplamente divulgado e batido obriga a
pensar seriamente nos problemas a serem corrigidos, remediados e
evitados. A autovisão otimista não exclui o olhar realista, ela apenas
impede o risco da recaída num otimismo fora de ordem. De qualquer
modo, atordoa testemunhar essa celebrização por meio de um ato
inclassificável numa sociedade na qual a celebrização que
aristocratiza e permite tratamento diferenciado é moeda corrente e a
malandragem, o "eu não sabia" e o crime constam como um bom método
para obtê-la. É preciso repensar - e a mídia tem o dever de dar o
exemplo - o modo de lidar com essas fraturas que surgem a contragosto
num Brasil mais igualitário e livre, mas sem os seus remédios usuais
deste estilo de vida: o bom senso e a internalização de limites por
meio de um sistema educacional primário eficiente e universal.
* * * *
"Somos afinal "mudernos", temos um pouquito de tudo!" Foi o que me
disse faz uns dias, um amigo português - estou na dúvida se devo
chamá-lo de Manuel ou de Joaquim - ao se referir ao Portugal dos
fados, do bacalhau e das belas amizades e, hoje, das contas a pagar.
O Manuel dramatizava a dívida e a dúvida (só antropólogos como o
Marcos Lanna perceberam como essas palavras não têm nada a ver com o
futuro, mas com um passado estabelecido quando uma pessoa recebe algo
de outra). Ele se referia ao Portugal que se amarrou ao globo pela
Europa, e assim contraiu uma enorme dívida. Poupo-me de expor, no
economês que permeia as páginas mais técnicas e sérias dos jornais, os
detalhes da coisa. Mas posso afiançar que os portugueses a consideram
feia e vergonhosa - quase um fim de mundo, exatamente como fazemos no
Brasil.
E aí temos um problema trivial: quem é o responsável pelo desastre, a
esquerda ou a direita? O governo ou a oposição? O passado ou o
presente? O rei ou o papa? O antigo ou o moderno? Todos - dizem Manuel
e Joaquim -, menos nós e os do nosso partido, grupo ou coalizão. Pois
lá, como aqui, há acordos e coalizões de modo que no universo do
consumo que individualiza, produz autoestima e iguala, espatifou-se a
clara, honesta e boa para culpar divisão do mundo entre certos e
errados. Entre uma esquerda (dos puros) e uma direita (dos ímpios).
"Veja, diz-me o Manuel com o rosto pálido, em que enrascada (os "r"
dobrados vão por conta de sua fala) estamos metidos!"
De fato, como viver num mundo horizontal e mais igualitário, vendo-o
por meio de critérios verticais e hierárquicos? Como ver o Portugal
moderno e liberal, se o método para julgá-lo passa por altos e baixos,
cristãos e judeus, ricos e pobres, todos ilimitados porque o
horizontal é balizado por fronteiras, mas o vertical contém o que
conhecemos de sobra neste nosso abençoado Brasil: o mais ou o menos;
e, mais que isso, o "mais ou menos" que, pressupondo múltiplos pontos
de vista (e verdades), tudo justifica e impede atribuir
responsabilidades e definir prioridades permitindo adiar. Ou seja:
escolher não escolher!
Poucos enxergam - tem a ver com o tal "liberalismo". Com esse estilo
de vida cujo princípio básico é não gastar mais do que se ganha. Com a
obrigação de permanentemente ser obrigado a calibrar interesses
individuais e coletivos. E disso decorre algo odioso e patético: somos
obrigados a escolher; temos que admitir que os recursos são escassos;
que o mundo se transforma e não vai para onde queremos; que o ganho de
hoje pode ser a perda de amanhã; e - valha-nos Deus! - que existem
mesmo limites. Limites, bom senso, equilíbrio, suficiência, competição
e eficiência. Tudo o que o estilo de viver hierarquizado inibe e
esconde, pois o Rei pode tudo. Talvez até mais do que Deus.
Vi, com a clareza dos marginais, como a crise portuguesa falava do
Brasil, tal como a nossa hiperinflação sanada pelo maldito Plano Real
falava de Portugal. Essa entrada tardia no mundo em que estado e
sociedade se equilibram. Num universo onde a competição e a inércia
(entre nós também chamada de jeitinho ou malandragem) começam a ser
depuradas das suas consequências negativas. Não é fácil o confronto
das velhas tradições, lidas como princípios imutáveis e naturais, no
confronto com o universo do mercado no qual tudo que se pensava como
sólido se desmancha no ar. Ou assim parece.