A leitura atenta do artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
para a revista "Interesse Nacional" deixa evidente que o presidente de
honra tucano não propôs que o PSDB deixasse de buscar o voto da
maioria da população. O ranço preconceituoso de sua referência ao
"povão" o fará pagar o preço de reforçar o viés elitista de um partido
que há muito tempo se desconectou do sentimento popular, mas ele não é
"um idiota", conforme o próprio disse em entrevista a Cristiane
Agostine, no Valor. Elaborar uma estratégia para se aproximar de
determinados grupos da sociedade é diferente de fechar-se aos
restantes.
O movimento de Fernando Henrique ao sugerir ao partido que exerça a
oposição fora dos limites estritos dos espaços institucionais, como o
Parlamento, buscando conexão com associações de bairro, profissionais
do entretenimento, empresários jovens, grupos culturais de periferia e
até redes de consumidores, conforme escreveu no artigo, aproxima-se do
que o seu sucessor na presidência, Luiz Inácio Lula da Silva propunha
em um encontro do PT sobre o socialismo em março de 2001, em São
Paulo, um ano e meio antes de chegar ao poder.
FHC faz movimento semelhante ao de Lula em 2001
O encontro se deu em um instante em que ainda não estavam dadas
condicionantes que abriram o caminho para a vitória oposicionista na
eleição do ano seguinte, como a fragmentação do bloco governista e a
crise do apagão da energia. Havia petistas falando que o governo FHC
viria com um candidato forte e que era importante o PT concorrer com
os olhos na eleição de 2006.
No discurso, tal como Fernando Henrique em seu artigo, Lula falou para
os próprios correligionários, não para o público externo. Depois de
críticas ao capitalismo - " o capitalismo não será solução para os
nossos problemas (...)por si só, é predatório (...) predestina que
grande parte da população seja pobre" - o futuro presidente afirmou:
"Marx imaginava uma sociedade de classes que não aconteceu. Hoje temos
um novo tipo de trabalhador, terceirizado ou por conta própria. O
discurso que eu fazia nos anos 80 já não vale mais. O trabalhador que
eu fui é uma minoria hoje. É preciso um novo discurso para esta gente
que não é mais explorada diretamente pelo patrão".
Lula obviamente não se referia à nova classe média que Fernando
Henrique elegeu agora como prioridade. O sucessor do tucano mirava no
segmento que se expandiu na sociedade nos anos 90, o novo
proletariado, ancorado na economia informal, ou pelo menos muito
distante de bater cartão: "é necessário uma política especial para os
trabalhadores que estão na rua e hoje não se sentem mais representados
pelas entidades tradicionais. É preciso todo um aprendizado nosso.
Lamentavelmente, nós não representamos a contento os que ganham
salário mínimo neste país".
O discurso de Lula em 2001 e a manifestação de Fernando Henrique agora
convergem para um mesmo fenômeno: o hoje ex-presidente tucano e o
petista que há dez anos ainda aspirava chegar ao poder percebiam que
seus partidos haviam sofrido uma quebra de representatividade, que não
poderia ser sanada da tribuna do Congresso ou com entrevistas a
jornalistas, mas buscando um novo segmento da sociedade para
interagir.
Em vários aspectos, o panorama desolador da institucionalidade
descrito por Fernando Henrique hoje, que vai do esvaziamento do poder
político dos governadores, com a concentração dos instrumentos
administrativos nas mãos da União, à transformação do Congresso em uma
câmara de vereadores federais e o completo esvaziamento ideológico dos
partidos, já estava presente há dez anos. A grande diferença é que a
ascensão de Lula ao poder também desossou os movimentos sociais, hoje
em grande parte divididos entre o atrelamento total ao Planalto e a
insignificância.
Neste panorama, talvez o mais lesivo aspecto para a prática política é
um fenômeno que não se restringe ao Brasil: a morte cerebral dos
partidos. Quando o sistema partidário deixa de buscar alianças na
sociedade para se tornar apenas uma máquina de votos com a qual um
agrupamento de caciques divide o botim administrativo, pode-se viver o
mesmo quadro que ocorre atualmente no Peru. Naquele país, os eleitores
terão em breve a oportunidade de escolher entre os dois candidatos
mais detestados pela população: Ollanta Humala e Keiko Fujimori. São
representantes de extremismos com alto teor de rejeição, que se
beneficiaram da fragmentação do centro político entre três candidatos
que se destruíram em um processo autofágico.
O sistema partidário peruano há pelo menos vinte anos entrou em
colapso: cada líder político organiza seu ajuntamento para participar
das eleições, sem estabelecer alianças. E desta maneira vai minando a
própria estabilidade: seja Keiko ou Humala, é certo que o próximo
presidente do Peru terá frágil sustentação popular, independente do
que venha a fazer. O Peru é o exemplo mais recente, mas de modo algum
o único, de fragilização partidária no continente. Exceção ao Chile,
Colômbia, Uruguai e Paraguai, é o que se observa na Argentina,
Venezuela, Bolívia, Equador.
A profusão de partidos, paradoxalmente, é um forte indicativo de
ausência de opções reais. A criação do PSD de Gilberto Kassab é um
forte indicativo da aproximação do Brasil do modelo apartidário de
política que viceja em parte da América do Sul. O artigo de FHC, que
se segue ao pronunciamento em que o senador Aécio Neves procurou
emular o avô e se colocar como liderança, são movimentos no sentido
contrário. Dão demonstração de vitalidade partidária ao fomentarem o
debate, de um modo só possível em partidos de oposição: não há
notícias de um artigo sobre o "papel do governo" dentro do PT, como
não houve este artigo dentro do PSDB entre 1995 e 2002. Há muito mais
vida entre os tucanos do que no partido que se forma.
César Felício é correspondente em Belo Horizonte