Uma grande discussão sobre as classes médias emergentes foi provocada
por um artigo de Fernando Henrique Cardoso. É um debate típico de
grupos que disputam o poder estatal. Mas existe no mundo também um
grande debate voltado para as pessoas que não disputam o poder
estatal, não têm projetos de salvação, muito menos acreditam no mito
do fim dos tempos.
Bruno Latour, na introdução do livro de 1.070 páginas Atmosferas da
Democracia, que traz inúmeras contribuições criativas, usa uma imagem
que talvez sintetize o sentimento das pessoas diante da política.
Segundo ele, há conjunções planetárias tão pavorosas que os astrólogos
recomendam que fiquemos em casa até que os céus mandem novas
mensagens. A cena política, com seus picaretas, bufões, terroristas, é
algo que desanima.
Mas se é assim, por que tanto esforço e tanto papel para detectar
novas possibilidades? O próprio Latour responde no parágrafo seguinte:
a astrologia e a ciência política não são exatas e há sempre a
possibilidade de novas conjunções, de mudanças. O momento de desespero
político permite, pelo menos, que se investiguem outras ideias, novas
matérias. Aliás, a tônica de sua intervenção é defender uma política
orientada para o objeto, uma política que não seja realista como no
tempo de Bismarck porque a palavra realidade perdeu o sentido, diante
de tantos crimes cometidos em seu nome.
De forma mais abstrata, esses temas podem ser discutidos numa série de
conversas que estou preparando. No momento, vou usá-los, parcialmente,
para expressar minha perplexidade diante do que acontece na Líbia.
Por que na Líbia? No século passado aderi ao socialismo
revolucionário, que continha uma proposta de salvação. Nas últimas
décadas tenho defendido a luta ecológica, que também encerra, embora
muitos não percebam, elementos da mitologia religiosa, como o fim dos
tempos.
Neste princípio do século 21, sinto a democracia liberal, pressionado
pela busca de recursos naturais, caminhar pelas mesmas trilhas
mitológicas, da invasão do Iraque aos bombardeios à Líbia. A suposição
de que um regime político pode ser imposto de fora para dentro, com a
força das bombas, só pode ser movida por sentimentos religiosos de
salvação.
John Gray, cujo livro Anatomia acaba de ser lançado no Brasil, abordou
essa questão na forma de sátira, escrevendo um artigo sobre a
importância da tortura para preservar a democracia e a necessidade de
proteger os torturadores no seu delicado papel. Foi alvo de inúmeras
críticas de gente que até hoje não entendeu a sátira, escrita na
tradição de Jonathan Swift, que, uma vez, propôs que os irlandeses
dessem suas crianças para serem comidas pelos ingleses.
Entendo também como uma sátira o texto de Peter Sloterdjick, no livro
coordenado por Latour, propondo o parlamento pneumático para levar a
democracia de cima para baixo aos povos da África e do Oriente Médio.
A proposta, bastante detalhada, implica um grande parlamento que,
lançado de paraquedas de um avião, a uma altura de mil metros, ao cair
seria inflado automaticamente. O parlamento pneumático de Sloterdjick
teria lugar para 160 representantes e contaria também com algumas
baterias de energia solar.
Quando John Gray questionou a imposição da democracia pela força e a
tortura, estava se baseando apenas nos fatos revelados em Abu Ghraib,
prisão do Iraque. Esta semana o WikiLeaks revelou inúmeros outros
problemas em Guantánamo, onde até um octogenário, com demência senil,
era mantido como perigoso terrorista.
O que acontece na Líbia não precisa só das sátira para se incluir na
dimensão do absurdo. Basta um exame frio dos efeitos colaterais da
luta pela democracia. Esses efeitos não são apenas bombardeios que às
vezes atingem civis. São mais concretos e podem, paradoxalmente,
representar um recuo na democracia ocidental.
Um exemplo disso é o drama dos refugiados que se concentram na Ilha de
Lampedusa e obrigaram a França a interromper os trens que vinham da
Itália. Apesar de o papa Bento XVI ter pedido por eles, os refugiados
do Norte da África podem provocar um recuo no próprio processo de
integração da Europa. Alguns países, como a França e a Alemanha,
tendem a questionar o Tratado de Schengen, que permite ao estrangeiro
circular, livremente, pela Europa, uma vez admitido num dos
países-membros.
Outro efeito colateral interessante foi revelado esta semana pelo
jornal The New York Times: um companheiro de Bin Laden, que lutou com
ele no Afeganistão, foi preso em Guantánamo e libertado em 2007, é
hoje líder de um dos grupos meio bizarros que lutam contra Kadafi. Sem
querer, os Estados Unidos tornam-se aliados de um militante da
Al-Qaeda.
Todos esses paradoxos que envolvem a democracia liberal não são novos,
mesmo dentro do contexto autoritário do comunismo. Quando os tanques
entraram em Praga, um grupo pequeno entre nós denunciou aquilo
afirmando que o socialismo não poderia ser imposto de fora para
dentro, na ponta das baionetas.
O próprio liberalismo, a julgar por pensadores como Gray e Isaiah
Berlin, este já morto, pode encontrar um caminho no seu labirinto.
Basta desvencilhar-se de um dos polos da contradição que o deforma. O
problema é escolher entre o consenso racional sobre o melhor modo de
vida ou a aceitação de que seres humanos podem desenvolver-se adotando
os mais diversos modos de vida.
Isso não implica passividade diante dos crimes de Kadafi. Mas
significa apenas admitir que é um absurdo imaginar que a democracia se
vai impor de fora para dentro, com bombas e tortura.
O marxismo foi uma religião secular, com seus ritos e sua mensagem de
salvação universal. A ecologia, com o mito do fim dos tempos, corre o
mesmo risco, assim como a democracia ocidental, com suas guerras pela
liberdade. Ao fundar sua ação na fé, a política, conforme observa o
próprio Gray, provou ser tão destrutiva como a religião, nos seus
piores momentos.