Na revista "piauí" deste mês, há um artigo seminal de Pérsio Arida,
sobre sua participação juvenil na guerrilha urbana. Lá está a análise
rara de um prisioneiro torturado sobre a onda revolucionária que pegou
nossa geração; lá estão os humanos tremores, a dúvida, o medo, todo o
irresistível delírio ideológico e psicológico que insuflou uma geração
para sofrimentos e mortes depois de 1968.
A luta armada foi a consequência da fé que tínhamos antes de 1964,
influenciados pela Guerra Fria, Cuba liberada, o Vietnã.
A importância que restou de tudo, como Pérsio aponta, foi justamente a
"via crucis" que tivemos de viver e que, por vias tortas, acabou nos
levando à democracia em 1985. Historicamente, foi bom.
O golpe militar de 1964 aconteceu porque nós não existíamos. Éramos
uma ilusão. A esquerda era uma ilusão no Brasil. (Já imagino as
"cerdas bravas do javali" se eriçando em alguns cangotes).
Mas, existia o quê? Existia uma revolução verbal. A ideologia
"revolucionária" era um ensopadinho feito de JK, Marx, Getúlio e
sonho. Existia uma ideologia que nos dava a sensação de que o "povo do
Brasil marchava conosco", um "wishful thinking" de que éramos o "sal
da terra".
Havia a crendice de que nossos inimigos estavam todos "fora" de nós,
fora do país e das estruturas políticas arcaicas que nos corroem há
400 anos. Existia um "bacalhau português" em nosso discurso, um forte
ranço ibérico em nosso aparente "rationale" franco-alemão: o amor ao
abstrato, a literatura salvacionista, a busca de um "Uno" totalizante.
A população nem sabia que existíamos. Não havia base material,
econômica ou armada, "condições objetivas" para qualquer revolução.
Por trás de nossas utopias, o Brasil escravista e patriarcal dormia a
sono solto, intocado. Éramos uma esquerda imaginária, delegando ao
Estado a tarefa de fazer uma revolução contra o Estado. Até nas
revoluções, precisamos do governo.
Por baixo dos sonhos juvenis, havia apenas o sindicalismo de pelegos e
dependentes do presidente, que deu a grande festa de 13 de março (o
comício da Central, com tochas da Petrobras e clima soviético). Eu
estava lá, olhando para Thereza Goulart, linda de vestido azul e coque
anos 1960, e vendo, depois, com calafrio na espinha, as velas acesas
em protesto contra nós em todas as janelas da classe média
"reacionária", do Flamengo até Ipanema. Essa era a verdadeira
"sociedade civil" que acordava.
Hoje, acho que o único cara que sacava a zorra toda era o próprio
Jango, mais brasileiro, mais sábio, entre os gritos de Darcy Ribeiro
falando do "Brasil, nossa Roma tropical!". Havia uma espécie de
"substituição de importações dentro da alma": a crença de que éramos
"especiais" e de que podíamos prescindir do mundo real, fazendo uma
mutação por vontade mágica. Só analisávamos a realidade "objetiva",
quando tínhamos de estar incluídos nela, subjetivamente. Em seu
artigo, Pérsio se inclui.
Mas existia o quê, então?
Existiam os outros. Os "outros" surgiram do nada. O óbvio de nossa
cultura pipocou do "nada" em 1964. Fantasmas seculares reviveram.
Apareceu uma classe média apavorada e burra, que sempre esteve ali.
Surgiu um Exército autoritário e submisso às exigências externas.
Ficamos conhecendo a ignorância do povo (que idealizávamos),
descobrimos que a resistência reacionária de minhas tias era igual à
dos usineiros e banqueiros. Descobrimos a violência repressiva de uma
falsa "cordialidade". Descobrimos o óbvio do mundo.
Eu estava dentro da UNE pegando fogo no 1º de abril e quase morri
queimado; mas senti nesse dia que a vida real começava. A sensação não
foi de derrota; foi a de acordar de um sonho para um pesadelo. Um
pesadelo feito de milicos grossos, burrice popular e pragmatismo de
gringos do "mercado". (Foi inesquecível o surgimento de Castelo
Branco, feio como um ET de boné verde na capa de "O Cruzeiro").
Em 1964, começara o calvário que nos levou a uma possível maturidade.
Despertamos para a bruta mão do "money market", que precisava nos
emprestar dinheiro para que o Estado pós-getulista verde-oliva
avalizasse a instalação das multinacionais aqui. Ou vocês acham que
iam nos emprestar US$ 100 bilhões para o Jango fazer a reforma agrária
com o Francisco Julião?
Aprisionaram-nos para contrairmos a dívida como, 20 anos depois, nos
libertaram para pagá-la.
Depois de 1964 e 1968, vimos que a esquerda tinha "princípios" e
"fins", mas não tinha "meios".
Nossos paranoicos achavam (e muitos continuam achando) que somos
vítimas de uma trama de Washington. Claro que o CIA armou coisas com
direitistas daqui, mas foram apenas os parteiros do desejo material da
produção.
O tempo da ditadura foi um show de materialismo histórico. Mas ibérico
não gosta de ver essas coisas. E logo tapamos os olhos e nos
consideramos as "vítimas", lutando pela "liberdade" formal. E não
víamos que a barra pesada estava entranhada em nossas instituições
políticas, assim como não havia ideal democrático algum em nossos
guerrilheiros.
Nessa época, poderíamos ter descoberto que um país sem sociedade
organizada morre na praia. E deveríamos ter descoberto que não adianta
nada analisar os "erros" de nossa esquerda "revolucionária" como se
fossem erros episódicos, veniais. A esquerda no Brasil tem de ser
repensada "ab ovo", pois é impossível trancar a complexidade de nossa
formação nacional num "pensamento único". Por isso, é desesperante ver
gente ainda querendo restaurar ilusões perdidas.
O tempo não para e as forças produtivas do mundo continuarão agindo
sobre nossa resistência colonial.
A mutação modernizadora, digital, do mundo nos obriga à democracia.
Quando entenderemos que a verdadeira revolução brasileira tem de ser
endógena, democrática, e que só um choque de capitalismo e de
empreendedores livres pode arrasar o "bunker" corrupto, a casamata
secular do Estado patrimonialista?
Pérsio não morreu e, 20 anos depois, ajudou a acabar com a inflação. Valeu...