O artigo que FHC escreveu sobre um possível programa novo para o
falecido PSDB caiu na boca maldita do dia a dia, no cafezinho
ideológico dos sabotadores e oportunistas. Todos sabem o que ele quis
dizer, mas fingem que não, para manter o mito sem vergonha da "herança
maldita" que eles conseguiram emplacar, graças à ignorância política
do povão, sim. O povão não tem educação política para entender a
complexidade de um projeto social democrata, que é o único que pode
enxugar os absurdos que incham um Estado falido, mas que os demagogos
ainda conseguem enfeitar de "patrimônio nacional". Sempre distorcem o
que FHC fala, num permanente desejo de fazê-lo "direitista",
neoliberal e outros ridículos xingamentos.
Ele quis dizer que o PSDB não deve continuar surripiando o discurso
populista e demagógico do PT, na base de "fome" de um lado e
"indigestão" do outro. Disse que o PSDB tem a tarefa de explicar o
complexo programa social democrata, para a nova classe média que se
forma aqui. Na mesma hora o Lulão, atual showman e palestrante,
acusou-o de desprezar o "povão". Um dia, essa mentirada ainda vai ser
corrigida pelos historiadores sérios do futuro. Se é que haverá
futuro... Mas, eu entendo a cabeça dos comunistas. Não dos picaretas
de hoje, mas dos bons e generosos comunas de 30, 40 anos atrás:
românticos e corajosos. E iam à luta - não estavam atrás de boquinhas
e mensalões.
Ai, que saudades do comunismo... O povão era nossa boa consciência, o
povão era nosso salvo-conduto para a alma pacificada, sem culpas - o
povão era nossa salvação. O ritmo das coisas tinha a linearidade de um
filme acadêmico. Nós, jovens de esquerda, falávamos muito em "luta de
classes", mas não conhecíamos ainda a violência da "reação".
Acreditávamos em um Papai Noel histórico.
Mas, mesmo assim, como num Amarcord vermelho, eu me lembro com saudade
dos anos 60, durante a Guerra Fria... Ah, como era bom se sentir acima
dos outros, por superioridade ética. Nós éramos mais "puros", mais
poéticos, mais heroicos que os meus colegas da PUC, todos já de
gravatinhas adultas.
Eu, não. Eu era comunista. Andava mal vestido, com minha testa alta,
barba revolucionária, citando Lenin em francês: "La Liberté, pour quoi
faire?" (Liberdade, pra quê?"). Ah... como era bom se sentir superior
a um mundo povoado de "burgueses, caretas e babacas", como eu
classificava a humanidade. E todo esse charme vinha sem esforço, sem
estudar nada; bastava ler um ou outro livrinho da Academia da URSS,
decorar meia dúzia de slogans e pronto, eu podia andar com minha
camisa de marinheiro aberta ao vento e vagar por Copacabana, olhando
em volta a população de "alienados", trabalhando em suas vidas
"medíocres".
Ah... que saudades dos amores de esquerda, quando eu cantava as
meninas ainda sem a maquiagem burguesa, a quem eu lançava a cantada
infalível: "Não seja "pequeno-burguesa" e entra aí no "aparelho", meu
bem... Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo".
Como nós amávamos os operários, que na época eram o "futuro da
humanidade". Nas oficinas do jornal comuna que fazíamos, crivavam-nos
de perguntas e agrados, sendo que os ditos operários ficavam
desconfiados e pensavam que nós éramos veados e não fervorosos
marxistas.
Como me alegrei quando Mao Tsé-tung proibiu Beethoven na "revolução
cultural", pensando: "Claro, temos de raspar tudo que a burguesia
inventou e começar de novo" - um mundo novo feito de agricultura e
homens fardados de cinza, rindo, felizes, unidos pelo futuro do
"povão". Tiveram de matar uns 10 milhões de "alienados", mas era para
o Bem...
Como era bom ignorar as neuroses pequeno-burguesas de minha mente,
pois eu não me sabia melancólico e narcisista; eu era apenas um
comunista "saudável" como um cartaz de balé chinês. Amava as reuniões
secretas - muito cigarro e a sensação de viver uma missão profunda. As
discussões sem fim: "questão de ordem, companheiro!", "o companheiro
está numa posição revisionista" ou "a companheira está sendo sectária
em não querer dar para mim".
E a beleza de não ter um tostão e pedir dinheiro à mãe ou roubar do
paletó do pai (milico "reaça") para comprar Marlboro de contrabando
(meu secreto pecado)? Era belo não ter um puto e se orgulhar disso, na
convivência dos botequins, olhando os operários bêbedos de pobreza e
pensar: "Um dia eles serão "homens totais", "sujeitos da história",
enquanto os mendigos vomitavam no meio-fio - gente que eu chamava com
desprezo de "lumpens"".
Que saudades. Tudo era possível - bastava convencer o proletariado de
que os burgueses malvados, aliados ao latifúndio improdutivo e
dominados pelo imperialismo americano eram a causa de seus males.
Pronto; aí, os proletários conscientizados tomariam o poder, e tudo
seria perfeito e bom. Por isso, eu tenho hoje tanta saudade da
generosa burrice que nos assolava.
E depois, quando a barra pesou de 68 em diante, com a dura frieza da
era Médici, lembro-me do sentimento de ser uma "vítima" real da
ditadura, fugindo da morte, ajudando os reais suicidas que faziam a
guerra urbana, achando que iam derrotar o Exército com meia dúzia de
revólveres e assaltos a banco. Muitos morreram. E, mesmo na tragédia
daqueles dias, senti a delícia dolorida de ser uma vítima
"santificada" da violência da direita, e isso me enobrecia, sempre
acima dos "babacas, burgueses e caretas".
Um dia, um companheiro (que morreu há pouco...) me disse: "Não tema a
morte. Marx disse que somos seres sociais. Assim, o indivíduo é uma
ilusão. Para o comunista a morte não existe." E eu sonhei com a vida
eterna.
Era bom, era lindo. Por isso, quando vejo as demonstrações de
bolchevismo arcaico nos arredores do governo, não me horrorizo, nem
reclamo, como fazem esses meus colegas jornalistas "burgueses,
neoliberais vendidos aos patrões". Ao contrário, tenho até vontade de
chorar pelos bons tempos...