Um dos textos mais perturbadores que li não foi escrito por um
dramaturgo, mas por A. R. Radcliffe-Brown, um importante antropólogo
de Oxford cujo projeto era uma contradição em termos: construir uma
ciência natural da sociedade humana. Ao discordar de um dos seus
professores e verificando que a sua dissociação era irremediável,
mestre e discípulo chegaram a um acordo paradoxal: concordaram em
discordar.
Achei fantástico esse negócio de poder concordar em discordar quando
todo o meu aprendizado acadêmico (e cultural) era o de concordar a
despeito da discórdia! Esse apanágio dos autoritarismos e do processo
paralelo de se sentir culpado que nasce quando somos corrigidos porque
discutimos com Tio Amâncio, cujo lema era: "Ler demais produz parafuso
de menos." Eis uma frase que certamente acolhi. Os Amâncios têm muita
razão e exatamente por isso merecem ser contestados. E o Brasil não
tem oposição porque, entre outras coisas formais (reformas disso ou
daquilo), falta-nos a índole individualiista-igualitária baseada não
no egoísmo, mas na aceitação da discordância.
Eliminar a opinião divergente tem como principal aliada a
internalização da culpa. Quem não percebeu aquele olhar que se segue a
um "casual": "Eu sei o que anda aprontando..." Ou quando o puto do
diretor nos manda morder a língua insinuando que teríamos falado dele
"coisas terríveis". O medo do inquérito ou - quem não lembra? - da
denúncia. Eis um modo de governar por meio da culpabilização de todos
contra todos, produzindo o que, em outro contexto, Hobbes chamou
(porque ele pensava que todo mundo nasce com 20 anos) de Leviatã, só
que, quando não se trata de interesses, mas de culpa, temos uma
"harmonia" cujo centro está no recalque e no dogma da transparência
absoluta que suprime o direito à autonomia e à prerrogativa de ser
diferente num universo de iguais. O que nos leva de volta à lindeza
democrática de concordar em discordar.
Algo que eu chamaria de compreensão amorosa. Esse gesto fundado no
paradoxo posto por algum outro situado fora ou dentro de cada um de
nós. O desviante tomado como traidor pode também ser um guia porque
enxergou o que ninguém viu. A literatura de Kafka é anterior às
considerações de Max Weber sobre a dominação burocrática. Do mesmo
modo que o Thomas Mann de "José e seus irmãos" antecede as
fundamentais considerações críticas de Louis Dumont sobre o indivíduo
e o individualismo como invenções culturais. E não foi por acaso que
Freud leu tanto Dostoievski quando estudou os danos nascidos quando
uma emoção troca de lugar com outra.
Seria preciso invocar Jesus Cristo, que, no seu acordo diante da
dissonância, pediu perdão por todos nós que rotineiramente o
assassinamos de vários modos, inclusive por meio da intolerância
religiosa? Dele foi a proposta da doutrina paradoxal de amar a puta a
ser apedrejada e de dar outro lado da cara, ainda intacta, para as
devidas bofetadas.
Qual a vantagem de, agora sim, amar um Brasil governado pelo meu
partido? Seria amor ou obrigação o resultado do mandamento que exige
honrar pai e mãe? O respeito é algo que chega de fora para dentro,
como ocorre no amor aos ditadores e nas concórdias políticas sem
oposição e com vantagens financeiras, como ocorre hoje no Brasil, ou
algo que decorre da compreensão?
Essa compreensão que exige a dissonância e o insólito. O não previsto
que jaz em todo planejamento humano justamente porque o
verdadeiramente humano é uma caixa de surpresas da qual escapolem a
decepção, a frustração e a perda: esses alicerces da vida. A
individualização precisa do seu contrário a ser obtido na relação e na
visão do todo que permite a discórdia positiva. O retorno do limite.
Quando um professor diz a um aluno: eu e você podemos concordar em
discordar, ele permite que o aluno possa ser um pouco aplicado e um
pouco vadio; que ele seja um tanto submisso e um outro tanto
insubmisso; que ele seja apaixonado e, ao mesmo tempo, capaz de ver
algumas coisas com objetividade. A objetividade que não leva à forca é
a que está dentro de cada um de nós. É preciso aprender a discordar
para poder dialogar positivamente com os personagens que habitam
nossas almas. Não sei se Fernando Pessoa, poeta, foi capaz de realizar
isso, ele que em toda a história da literatura foi tanta gente,
conforme reafirma o admirável livro de José Paulo Cavalcanti Filho.
Mas sei que pessoas e sociedades incapazes de dialogo interno, por
mais doloroso que isso possa ser - vejam o Japão e a Alemanha
aprendendo liberalismo democrático depois da derrota de 1945; vejam os
Estados Unidos produzindo toda uma literatura e uma arte contra o
capitalismo e agora mesmo dando uma nota baixa à sua dívida -, jamais
alcançam o cerne do ideal democrático. Eis um ideal somente alcançável
pela capacidade de discordar de si mesmo como rotina, como eu - réu
confesso - tenho feito desde que cheguei neste triste e miserável
mundo de todos os deuses (e de todos os diabos)...