Está a se efetivar o maior processo de entropia republicana da nossa
História. O fenômeno poderia ser ilustrado com a frase, um tanto
esquisita, do prefeito de São Paulo, quando falou da formação de novo
partido, mais ou menos nos seguintes termos: não é uma organização nem
de direita, nem de esquerda, nem de cima, nem de baixo. A frase do
prefeito lembra a definição que do ser fazia o pré-socrático Heráclito
de Éfeso: não é nem quente, nem frio, nem branco, nem preto, nem alto,
nem baixo. Enquanto a definição heraclitiana ficou nas névoas da
metafísica grega, o significado da afirmação de Gilberto Kassab é
relativamente simples de ser desvendado: trata-se da ressurreição do
velho "centrão", criado na era Sarney para fazer as delícias de
políticos de carreira e burocratas de plantão, que não queriam largar
o osso das benesses oficiais. Todo mundo com o governo, ninguém
contra, que não somos de ferro!
Gravíssima situação que faz lembrar o pesadelo antevisto por
Tocqueville para as democracias, efetivado pela onipotência da
maioria, banida como desserviço à pátria a presença de qualquer
oposição, mesmo que esta se traduza em singelos protestos veiculados
pela mídia. É a síndrome chavista da "vontade geral" pura e simples,
encarnada no líder e que impede que os cidadãos se expressem pela boca
dos seus representantes. É a perversa tendência à anulação de qualquer
signo de insatisfação da sociedade por meio da imprensa livre,
protagonizada, ao longo da última década, pelo casal Kirchner, nesse
tango de mau gosto de um passo para a frente e dois para trás, em que
ficou enredada a democracia argentina.
Felizmente, as coisas não chegaram ainda, no Brasil, ao extremo da
entropia total, dada a presença no Congresso Nacional de vozes que se
erguem contra essa tendência. Mas que a força do rolo compressor
oficial está em andamento, disso não há dúvida. O mostrengo mostrou as
suas garras ao ensejo da recente visita do presidente americano ao
Brasil, quando os policiais cariocas deram tratamento à margem da lei
aos jovens que protestavam no centro do Rio, ou no atentado de que foi
vítima conhecido blogueiro que se caracterizou por criticar as
políticas do governo fluminense. Ensaios de intimidação e de
prepotência que em nada ajudam a vida democrática e a defesa dos
direitos humanos, tão badalada pela atual presidente.
Porém a sociedade brasileira, felizmente, é mais complexa do que
imagina a vã sabedoria oficial. O episódio ocorrido semanas atrás no
canteiro de obras da Hidrelétrica de Jirau e que se estendeu como
rastilho de pólvora por outros cenários do PAC 2 está a revelar que os
estrategistas do governo se esqueceram de combinar os projetos
desenvolvimentistas com a própria sociedade. Pior ainda, com os
trabalhadores dos canteiros. A insatisfação é clara e não poupou as
lideranças peleguizadas ao redor da CUT. Estas ficaram em palpos de
aranha para dar uma explicação à sociedade acerca dos violentos
protestos dos operários nos canteiros administrados pelo PT e
coligados. O rolo compressor não conseguiu abafar os reclamos
trabalhistas. Nem conseguirá, com certeza, esconder as perdas que a
economia do País terá com a indevida intervenção do governo na gestão
da empresa Vale, que está sendo obrigada, com a defenestração do
anterior presidente, a praticar políticas econômicas nada rentáveis e
atentatórias aos interesses dos acionistas.
Caberia indagar, a esta altura dos acontecimentos, onde está a
"herança maldita" de que tanto falava Lula ao longo dos seus dois
mandatos-palanque. Hoje, certamente, essa herança não seria
identificada com o "neoliberalismo" de Fernando Henrique Cardoso, que
garantiu as privatizações (as quais desoneraram o Tesouro Nacional e
aumentaram o ingresso de dinheiro nas arcas oficiais) e efetivou o
saneamento das contas públicas com a promulgação da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
A perversa herança é constituída, hoje, pelo reforço da tendência
estatizante presente no coração do governo, pelas mãos do lulismo e do
petismo, na versão castilhista, que, ensaiada na década passada nos
pagos gaúchos, se tornou atuante em nível nacional, no atual momento,
por força da identificação do núcleo duro do poder com essa
tresloucada propensão. Porque a inflação está voltando, quase
descontrolada, às prateleiras da economia não pela mão do saudoso
controle dos gastos públicos, mas justamente turbinada pela
megalomania lulista do "nunca antes na história deste país" e pelo
carnaval de bolsas e subsídios oficiais pagos a eleitores pobres,
ongueiros irresponsáveis, burocratas corruptos, companheiros e até a
países "amigos", como se tem revelado na recente revisão dos preços da
energia vendida ao Paraguai. Tanta gastança tem preço. E essa "herança
maldita" afetará os bolsos de quem sempre sai perdendo na história do
nosso republicanismo patrimonialista: o contribuinte.
A presidente Dilma regressou há dias da sua visita oficial à China.
Tomara que a mandatária tenha aprendido as lições de realismo político
do mandarinato e coloque definitivamente nos trilhos do bom senso as
nossas relações internacionais, loucamente polarizadas, no ciclo
lulista, pelo viés ideológico, que tudo deforma. O Brasil perdeu, no
caminho dessa megalomania vácua e irresponsável, a oportunidade de
conquistar, com o apoio dos grandes, a cadeira permanente no Conselho
de Segurança da ONU, bem como a liderança na Unesco e na Organização
Mundial do Comércio.
A declaração final dos líderes do Bric na China, referindo-se à
necessidade de renovação da ONU, foi vaga demais para as pretensões
brasileiras. O Itamaraty precisa voltar ao seio da tradição do barão
do Rio Branco, que fez os nossos diplomatas serem respeitados porque
punham em prática políticas diuturnamente amadurecidas na análise
estratégica do mundo e das necessidades do País.