Folha De S Paulo
HÁ UNS DOIS ANOS tive uma diarista que começava a trabalhar muito cedo -por escolha dela; às 6h ela já estava em minha casa. Uma morenona bem carioca, simpática, risonha, disposta, sempre de altíssimo astral.
Gostei dela, e como detesto fazer ares de patroa -e não sei-, tínhamos uma relação amistosa e legal, como devem ser todas as relações. Algum tempo depois, comecei a fazer aula de natação em um clube que fica a uns 500 metros de minha casa. A aula era às 7h, mas e a preguiça? Preguiça de levantar da cama, e enfrentar a distância ficou difícil. Tive então uma ideia: levá-la comigo. Assim, teria companhia para ir e voltar, e seria mais fácil a caminhada. Vamos deixar bem claro: não foi nem um ato de gentileza de minha parte, nem pensei apenas em meu proveito.
Achei que seria bom para as duas, e ela, que talvez nunca tivesse entrado numa piscina, ia adorar.
Perguntei se gostaria, ela ficou toda feliz, e, a partir daí, todos os dias íamos juntas, conversando.
Eu pagava minha aula e a dela, e às 8h30 estávamos de volta, alegres, falando sobre nossos progressos. Já que não posso mudar o mundo, pensei, estou exercendo o socialismo -ou a democracia- pelo menos em meu território. Mas notei que a cada vez que contava isso para os amigos, nenhum deles dizia uma só palavra; nem para achar que tinha sido uma boa solução, nem para ficar contra, nem ao menos para achar alguma graça. Silêncio geral e total.
O tempo foi passando. Comecei a perceber pequenos desvios no troco, às vezes dava por falta de uma das três mangas compradas na feira, os picolés que guardava no freezer desapareciam, os refrigerantes e sabonetes também, e eu pensava: "tem dó, Danuza, afinal ela toma duas conduções para vir, duas para voltar, a grana é pouca, se ela fica com oito ou dez reais da feira, é distribuição de renda. E se comeu metade do Gruyère, dizer que o queijo francês é só seu, é um horror"; e assim fomos indo.
Fomos indo até que um dia viajei por um mês, e quando voltei, houve problema com um cheque; coisa pouca, mas ficou claro, claríssimo, que tinha sido ela, e tive que demiti-la, o que aliás me custou bem caro, em dinheiro e pela deslealdade. Depois da demissão, fui descobrindo coisas mais graves -e nem vou contar todas, só uma delas: nos fins de semana, ela vinha com o marido, punha o carro na garagem do prédio e o casal passava o fim de semana na minha casa.
Depois de recibos assinados, tudo liquidado, chegou a conta do telefone do mês em que estive fora: havia 68 ligações para um único celular. Liguei para o número e soube que era de um funcionário do clube de natação, que ela paquerava.
Quando entrou a substituta, tive que comprar lençóis, toalhas e um monte de coisas que ela havia levado. Sei que não sou um modelo de dona de casa, mas alguém conta todos os dias quantos lençóis tem? E tranca os armários? Não eu. Durante um bom tempo fiquei mal: pela confiança, pela traição, depois de quase dois anos de convivência. E agora?
Não sei. Afinal, somos ou não somos todos seres humanos iguais, como me ensinaram? Ou é preciso mesmo existir uma distância empregado/patrão, como dizem outros? Ou esse foi um caso singular?
Aprendi que a luta de classes começa dentro de nossa casa, e mais especificamente, dentro da geladeira. E enquanto o mundo não muda, passei a comprar queijo de Minas, que além de tudo não engorda.
PS: com seu bigodinho recém-aparado, e o cabelo recém-pintado, Sarney está a cara do ator Dirk Bogarde em "Morte em Veneza".
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