O Globo
Há mais de um mês que a cidade do Rio de Janeiro plana no espaço dela mesma, encantada por um verão de céu euforicamente azul e brisa suave que nos incentiva a encarar o incansável sol. Assim como se a natureza tentasse se desculpar pelas tragédias que provocou recentemente na vizinha serra fluminense.
Mas parece que ninguém quer mesmo ouvir falar desse assunto, só mestre Zuenir Ventura, em sua coluna, ousou tocar outro dia na epifania estival que ilumina essa nossa cidade. Deve estar havendo um complô de silêncio organizado por sábios de extrema responsabilidade, a fim de que não nos esqueçamos, nem por um instante, das dores do mundo. Mesmo que a beleza (essa hipótese de felicidade) também faça parte dele.
Atualmente, sábios, jornais e a sensatez do mundo preferem que prestemos atenção exclusiva, por exemplo, às revoltas sucessivas no mundo árabe, com reportagens frenéticas e fotos dramáticas, mesmo quando de pura celebração. Há muito tempo que não tínhamos uma tal revelação coletiva dos esgares de uma mudança na história, um parto histórico da humanidade em plena transformação.
No passado mais longínquo, os líderes tribais ou feudais eram heróis sublimes, a brandir suas espadas em nome das quais seu exército de combatentes era capaz de morrer sem nem saber por que. Depois, a partir da era industrial, os líderes se tornaram tão políticos quanto militares, empreendedores de ideais, verdadeiros CEOs de suas revoluções, organizando a massa para o sucesso de suas empresas. Mas os combates a que estamos tendo o privilégio de assistir talvez sejam os sinais da primeira revolução pós-industrial da história.
Conhecemos de sobra os ditadores e monarcas autoritários ameaçados de perder o poder no mundo árabe, são todos filhos do petróleo queimado em benefício da era industrial. Mas mal conseguimos saber quem se encontra do lado oposto ao de Mubarak, de Kadhafi ou do rei do Bahrein, não temos notícia do nome de nenhum grande líder majoritário dos que se revoltaram contra eles.
Na lógica industrial, o valor do produto determina a riqueza de cada um, é preciso acumular resultados para ganhar mais poder, um poder naturalmente centralizado. Mas no capitalismo pós-industrial, “imaterial e cognitivo”, como diz Cezar Migliorin (escrevendo sobre cinema pós-industrial, na revista virtual Cinética), “não é mais no produto/ matéria que se encontra o centro do valor, mas no conhecimento, na forma de se organizar e modular uma inteligência coletiva”. A lógica da riqueza industrial está na escassez do produto; a pós-industrial, na abundância do conhecimento.
Como ainda não estamos muito acostumados a isso, os serviços secretos das potências mundiais dão tratos à bola para descobrir por que está acontecendo o que eles não conseguiram prever e por que esses acontecimentos não estão sendo financiados ou armados pelo inimigo delas, como era natural durante a Guerra Fria, o apogeu da disputa industrial.
Por outro lado, a imprensa de um modo geral e os principais analistas políticos de todo mundo simplificam suas observações com a ideia de que é o “povo” que está nas ruas, um povo anônimo e impessoal, um povo idealizado fruto de nosso voluntarismo, sublimado por velhos mitos coletivistas que nunca conseguiram nos explicar nada.
O que está nas ruas dos países árabes, o que ocupa Benghazi, a praça Tarhir ou a Pérola do Bahrein, são os protagonistas de uma fragmentação cultural libertária, anunciada e desenvolvida pela globalização através da internet, suas redes sociais, blogs, sites, e-mails e tudo mais que já está ou ainda virá por aí, com seu compartilhamento de informações em alta velocidade e sem limites geográficos. A internet como plataforma de iluminação e lançamento (não confundamos plataforma com programa), através da qual gozamos formas inéditas de relacionamento com o mundo e depois da qual nunca mais seremos os mesmos.
O milagre dessa revolução pós-industrial é o milagre do conhecimento, do gosto pelo conhecimento livre e portanto da democratização de nossa existência. Essa é a grande novidade capaz de reunir tanta gente nas ruas, praças e cidades de países com décadas e até séculos de repressão autoritária. Procuramos quem os manipula e não encontramos ninguém, é apenas como se esses novos consumidores de conhecimento estivessem nos dizendo: “Aprendemos a pensar e viver por nossa própria conta, e gostamos disso.”
Isso não significa que a lógica do capitalismo industrial vá desaparecer. Assim como o advento da indústria, na passagem do século 18 para o19, não acabou com o comércio, aagricultura ou o artesanato em seus formatos clássicos, o mundo pós-industrial do século 21 seguirá coexistindocom aquilo que dominou o sécul 20. Em permanente estado detensão pois, embora os contráriosnão se excluam necessariamente, asgrandes transformações tendem a se multiplicar.
A má notícia é que os grandes centros de poder mundial (político, econômico ou militar) não ficarão indiferentes a essa revolução. É claro que ela não afeta somente o rei Abdullah da Arábia Saudita ou a ditadura teocrática dos aiatolás do Irã. Perdido no meio do dinâmico noticiáriosobre os acontecimentos no mundo árabe, estava ontem mesmo, numcanto de jornal, o pequeno título de curta matéria: “China bloqueia rede social para evitar organização d protestos.” Nem todo poderoso é como Kadhafi, capaz de se oferecer como mártir de seu próprio horror — ninguém que tenha algum poder o entrega de graça.
Enquanto sopra a brisa na orla carioca e o sol nos afaga com esse verão de sonho, assistiremos ao início desses novos tempos, torcendo por um dos times, mas sabendo que nenhum deles joga sempre de um lado só.
CACÁ DIEGUES é cineasta. E-mail:
carlosdiegues@uol.com.br.
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