O Estado de S.Paulo - 25/02/11
"Democracia liberal", "direitos humanos", "economia de mercado", esses são os nossos três principais valores. São eles que compõem o ethos da nossa civilização. Estamos de tal forma imbuídos deles que acreditamos não poder haver nenhum outro modelo político-econômico melhor do que esse. É a sociedade aberta, tão almejada e proclamada por todas as nações ocidentais.
Ocidentais, como assim? Esse sapato não caberia em todos os pés? Não seria essa fórmula a única adequada para o desenvolvimento dos povos?
Não. E basta prestar atenção na China para entender a complexidade do problema. Não existe, por lá, nada de democrático ou liberal, não se respeitam os mais elementares direitos individuais e, ao menos internamente, não se obedece no campo econômico nada parecido com a lei de oferta e procura. Só mesmo o Lula para acreditar que os chineses praticam uma "economia de mercado".
E, no entanto, a China está dando certo. Já é a segunda maior economia do mundo e é respeitada por todas as outras nações.
Não seria o caso de levar a cultura chinesa mais a sério? Eles são diferentes dos ocidentais em quase tudo. Os valores do confucionismo desconcertam todos os nossos ousados e irreverentes homens de empresa. Todo mundo vai até lá acreditando que poderá fazer um "negócio da China" e a grande maioria se decepciona. Negociar com chineses é diferente. Eles prezam menos o negócio em si do que o relacionamento advindo dele. Os ocidentais cultivam o individualismo; os chineses buscam o coletivo. A tão difundida cultura da impessoalidade nos negócios dos ocidentais não funciona na China.
Nenhum executivo chinês fecha um negócio se não tiver previamente estabelecido uma relação de amizade com a outra parte. E conseguir isso não é fácil. Implica dar bons presentes, jantares e - o mais importante - ter sido apresentado por alguém de confiança. Obviamente preços e prazos são levados em conta. Mas não são esses os fatores decisivos.
A nossa cultura ocidental é contratualista. Até mesmo na religião, Deus fez uma aliança com Abraão. Os seus descendentes o teriam como único deus e, em troca, Deus faria de seu povo o "eleito". E Cristo, manifestamente, teria vindo ao mundo para celebrar conosco uma nova aliança.
Para os chineses, o que está escrito nos contratos não é o mais importante. Haja vista que até hoje, na China, ninguém tem título de propriedade de nada. O que conta, realmente, é o relacionamento.
A China vem demonstrando que sabe praticar, com habilidade, o jogo capitalista. E - o que para nós é chocante - sem ter de assimilar os nossos valores. Sem democracia, sem respeito aos direitos humanos e sem liberdade econômica.
Nós acreditávamos que tudo isso era um todo indissociável. E de repente surge a China para desmentir as nossas crenças.
E não é apenas a China. Há a Índia, também. E a cultura dos indianos é outra que não tem nada em comum com a nossa. E, não se pode esquecer, há diversos outros países asiáticos - como a Indonésia e a Malásia - que estão se saindo bem no capitalismo sem ter de adquirir, no pacote, os nossos valores.
O que nos falta aqui, no Ocidente, é um pouco de humildade. As culturas que chamamos de "orientais" e "exóticas" são, em geral, muito mais ricas, antigas e complexas do que a nossa. Nós, no nosso íntimo, acreditamos que o mundo começou na Grécia antiga e no Império Romano; passou pela Idade Média, pela Renascença, pela Idade Moderna e chegou à Idade Contemporânea. Ocorre que, para outras civilizações, nada disso faz sentido.
O cristianismo só é importante para nós. Os judeus ainda esperam a vinda do Messias e os muçulmanos veem em Jesus apenas mais um profeta. Os hindus acreditam em vários deuses e os chineses e os budistas não creem em deus nenhum.
O que nós chamamos de História Universal só existe para nós. É a história do Ocidente.
Enquanto isso, no Oriente, as civilizações que se sucederam eram todas muito mais exuberantes e opulentas do que as nossas. Nós nada sabíamos sobre eles e eles tampouco sobre nós. Quando Marco Polo, ainda na Idade Média, visitou a China e voltou maravilhado para contar o que vira, ninguém em Veneza o levou muito a sério.
É comum, dentro da nossa empáfia, dizer que os muçulmanos são povos primitivos. Pois enquanto nós, por aqui, amargávamos a Idade das Trevas, o Islã florescia. O nosso "Renascimento" nada mais foi do que a retomada da arte e da ciência da Grécia antiga. E quem era depositário dessa herança? O Islã.
Até mesmo no que diz respeito à contagem do tempo há grandes divergências. O conceito de "flecha do tempo" - ou seja, a ideia de passado, presente e futuro - só existe para nós. Tanto para os hindus como para os taoistas e os budistas o tempo é cíclico, ou seja, nada progride ou evolui, tudo se repete. O único pensador ocidental a intuir tudo isso foi Nietzsche, com a sua ideia de "eterno regresso". E foi muito mal compreendido por pensar assim.
Aqui, no Ocidente, há agora uma imensa crise no que tange às convicções. Nós tínhamos valores e crenças que julgávamos universais e indubitáveis. Agora, depois que todas as nossas ideologias fracassaram, nós nos tornamos todos relativistas. Estamos aceitando a noção de que não existem verdades absolutas. E também a de que, mesmo que essas verdades existissem, não seria por meio da razão - do raciocínio - que elas poderiam ser alcançadas. Dá-se a este desânimo o pomposo nome de "desilusão pós-moderna".
Nós, de nossa parte, continuaremos a pregar, incansavelmente, a democracia, os direitos humanos e a economia de mercado.
Não porque essas verdades são únicas, mas sim - e principalmente - porque essas verdades são "nossas".
Entrevista:O Estado inteligente
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