O GLOBO - 19/02/11
A indicação, pelo PT, do deputado João Paulo Cunha como presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, além de ser um menosprezo à opinião pública e uma demonstração de que a Câmara já não tem mais força moral para impedir gestos que a desmoralizem, faz parte de uma ampla manobra petista para constranger o Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão que se avizinha, tratando os acusados como virtualmente absolvidos.
Dessa manobra participa, sobretudo, o ex-presidente Lula, que, depois de ter feito um discurso à nação dizendo-se traído, ainda em 2005, tem se dedicado nos últimos anos a tentar apagar da História do país o maior escândalo de corrupção já registrado, alegando que se tratou de uma tentativa de golpe para tirá-lo do governo.
Ainda na Presidência da República, Lula recebeu no Palácio o ex-ministro José Dirceu, acusado pelo procurador-geral da República de ser o "chefe da quadrilha" do mensalão.
Dirceu saiu alardeando que Lula se dedicaria, quando deixasse a Presidência, a esclarecer "a farsa" do mensalão para provar que ele não passara de um golpe político. Ele, que dissera anteriormente que "mensalão não é corrupção, é financiamento de campanha com caixa 2", agora adota a teoria conspiratória que transforma o episódio em uma luta dos legalistas do PT contra os golpistas.
O próprio Lula adotou o discurso, sendo essa pelo menos a terceira versão que abraçou. Primeiro se disse "traído", sem acusar ninguém - insinuou que quando deixasse a Presidência revelaria -, depois alegou que o caso não passava de uso do caixa 2 em campanha eleitoral, o que seria tradicional no Brasil, e agora vem com essa história de golpe antidemocrático.
"Vocês viram o que aconteceu comigo em 2005?", gritou em recente comício. "Mais uma vez se tentou truncar o mandato de um presidente democraticamente eleito."
Dentro do PT há também diversos movimentos concatenados para tratar os acusados do mensalão como se tivessem sido virtualmente absolvidos dos crimes de que são acusados.
O ex-tesoureiro petista Delúbio Soares, por exemplo, expulso do partido ainda em 2005, quando o escândalo de que foi protagonista estava quente, agora está querendo que a direção partidária reconsidere sua situação. Ele, que se diz um "petista histórico", quer ser reinserido nos quadros do PT.
Delúbio ficou famoso ao cunhar a expressão "dinheiro não contabilizado" para tentar explicar a fortuna que ele fez circular entre petistas e aliados no episódio do mensalão, dinheiro que, segundo a acusação aceita pelo Supremo Tribunal Federal, foi desviado dos cofres públicos e de empresas privadas para comprar votos no Congresso a favor do governo.
Ele foi responsabilizado pelos empréstimos fraudados com o empresário Marcos Valério, feitos em nome do partido, mas hoje tem apoio da principal corrente, à qual continua ligado - o antigo Campo Majoritário, hoje chamado de Construindo um Novo Brasil -, para retornar oficialmente ao grupo, do qual nunca se separou mesmo depois de expulso.
Delúbio tem uma visão particular do mensalão: disse em entrevista, ao completar 50 anos, que o caso acabaria "virando piada de salão". Da sua parte, está fazendo o possível para tornar a previsão realidade.
Também o ex-secretário-geral do partido Silvio Pereira, que pediu desfiliação na mesma época para evitar a expulsão, pretende pedir a reintegração partidária. Silvinho, como era conhecido nos meios políticos, era quem fazia as seleções dos "companheiros" e aliados para os cargos públicos, e entrou no noticiário do mensalão por meio de uma prova ostensiva de corrupção: ele recebeu um jipe Land Rover de um empresário, na intermediação de uma negociata na Petrobras.
Segundo a denúncia do procurador-geral da República, Pereira "atuava nos bastidores do governo, negociando indicações políticas espúrias que proporcionavam desvio de recursos em prol de parlamentares, partidos e particulares".
Silvinho não está mais entre os acusados pelo mensalão do processo do Supremo: ele fez um acordo com a Procuradoria Geral da República e aceitou fazer 750 horas de serviços comunitários em três anos, numa aceitação de culpa.
O crime de que ele era acusado, o de formação de quadrilha, pode prescrever ainda em agosto deste ano caso a condenação venha a ser de apenas um ano. Outras nove pessoas, entre elas, José Dirceu, estão acusadas nesse crime e podem ser beneficiadas pela prescrição.
Apesar dos esforços do relator, ministro Joaquim Barbosa, para acelerar o processo - e de fato, apesar de já terem corrido três anos, o processo do mensalão está acelerado pelos padrões do Supremo -, o julgamento só deverá ocorrer no fim deste ano ou no início de 2012.
A complexidade do caso e o grande número de envolvidos (38 réus) fizeram com que o procurador-geral da República na época, Antonio Fernando de Souza, só formulasse a denúncia perante o STF em abril de 2006, que viria a aceitá-la em agosto de 2007.
Barbosa tem conseguido, com o apoio de seus pares no Supremo, evitar boa parte dos recursos protelatórios, utilizados especialmente por dois dos réus: o ex-deputado Roberto Jefferson, que detonou o episódio ao denunciar o mensalão em uma entrevista à "Folha", e o empresário Marcos Valério.
Não consigo ver onde se caracteriza a perda de poder do Congresso com a aprovação do projeto de lei que define a regra para o aumento do salário mínimo até 2015.
A Câmara estabeleceu que o governo deverá aumentar o mínimo com base no crescimento do PIB dos dois últimos anos e mais a inflação do período anterior de 12 meses. Ao governo caberá apenas colocar os números dentro dos parâmetros definidos pelo Congresso.
Entendo, no entanto, que há problema técnico na decisão, que a torna inconstitucional. Como, pela Constituição, é uma lei que deve definir o salário mínimo, um decreto não pode substituí-la. Provavelmente o governo terá que fazer aprovar uma lei delegada no Congresso, que exige um quórum maior.
Embora tenha uma ampla maioria, é possível que essa discussão traga problemas para o governo, se o clima ficar muito emocional com acusação de que o Congresso está abrindo mão de suas prerrogativas.
É possível também que esse dispositivo do projeto do mínimo nem vá a votação no Senado, pois, enquanto está em tramitação, qualquer senador pode pedir ao Supremo que o retire de pauta até que sua constitucionalidade seja decidida.
Entrevista:O Estado inteligente
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