Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 06, 2011

O melhor que se faz é rir:: FERREIRA GULLAR

Uma das melhores qualidades de Dias Gomes era o senso de humor, cada vez mais raro nas novelas


FOI UMA pancada difícil de suportar a notícia de que meu amigo e parceiro Dias Gomes (1922-1999) havia morrido naquela noite de maio de 99, em São Paulo, num desastre de automóvel. Na verdade, o chofer do táxi que o levava -ele e Bernadete, sua mulher- para o hotel fez uma manobra insensata e foi abalroado por um ônibus.
Mas por que em São Paulo? É que fora assistir à estreia de uma peça teatral e, após o espetáculo, decidira jantar num restaurante próximo. Terminado o jantar, ele pediu que lhe providenciassem um táxi. O chofer, que parecia bêbado, dobrou onde não podia, colidiu com o ônibus e Dias, impelido para fora do carro, bateu com a cabeça numa mureta que separava as duas pistas. E tudo acabou para ele.
Lembro com frequência desses detalhes que determinaram a tragédia. E penso: se em vez daquele chofer tivessem chamado outro, Dias ainda estaria aqui, entre nós, vivo, brincalhão, escrevendo para a televisão e para o teatro. Mas como por mero acaso o chofer foi aquele e não outro, e também por acaso, naquele exato momento, veio o ônibus em alta velocidade... Seria mais fácil aceitar se ele tivesse morrido num hospital, vítima de uma doença incurável.
Fomos amigos e parceiros. A primeira parceria deu-se em "Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória" (1968). Ele já havia sacado a ideia básica da peça, que teria a estrutura narrativa de um desfile de escola de samba. Aliás, ele me chamou precisamente por causa de minha proximidade com as escolas de samba e porque a peça teria, como eixo, um samba-enredo, coisa que ele não saberia fazer.
Essa parceria nos aproximou tanto que, anos depois, quando voltei do exílio, ele, que era então roteirista da TV Globo, me convidou para colaborar na roteirização de seriados, minisséries e novelas.
Devo dizer que foi ele quem me ensinou a escrever para a televisão, já que minha experiência até então era apenas teatral. Esse convite, porém, era diferente daquele primeiro: agora, seu propósito era conseguir-me um meio de suprir as necessidades da família, agravada pela doença de dois filhos.
E foi também por isso que aceitei o convite, uma vez que escrever para a televisão não fazia parte de meus planos. Pelo contrário. Só então, por razões profissionais, passei a ver novelas e aprender os macetes necessários à sua roteirização. Sempre deixei claro que aquela não era a minha praia e isso talvez explique o fato de que, alguns meses após a morte do Dias, fui demitido. Era ele quem garantia minha permanência ali, exigindo me ter como parceiro.
Mas os anos que trabalhei na televisão muito me ensinaram de teledramaturgia e sobre o próprio veículo. Ao ser demitido, levei um susto, mas, ao constatar que sobrevivera 40 anos sem aquele salário, ganhei alma nova e convidei a Cláudia para um jantar comemorativo de minha demissão. Como sempre fui demitido dos empregos que tive, sei que ser demitido sempre faz bem.
Mas voltemos ao Dias, a quem tanto deve nossa teledramaturgia. Trabalhando com ele, pude observar o seu domínio da técnica narrativa e a capacidade de ir fundo nos problemas, de que são exemplos "Roque Santeiro" (1985), "O Bem-Amado" (1973) e "Saramandaia" (1976), entre muitas criações suas.
É que, por trás do teledramaturgo, estava o que Dias essencialmente era: homem de teatro. Algumas de suas criações para a televisão foram originalmente obras teatrais. Apesar dessa preciosa contribuição, inventando personagens que passaram a integrar nosso cotidiano, nenhum teatro ou logradouro público do Rio, cidade onde viveu a maior parte de sua vida, traz seu nome. Por quê, não sei.
Mas não importa. Ele se mantém presente na memória das pessoas que se comoveram com suas histórias e se identificaram com seus personagens. A toda hora, ouvem-se menções a Odorico Paraguaçu, à viúva Porcina, a Roque Santeiro e aos arapongas.
Uma das suas melhores qualidades era o senso de humor, cada vez mais raro em nossas telenovelas. Nele, sobrava. Quando surgiram duvidosos cursos para ensinar teledramaturgia, comentou, brincalhão: "Quem sabe faz e quem não sabe ensina".

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