O desmoronamento da Cortina de Ferro no fim dos anos 80 não foi tão surpreendente quanto este sopro de liberdade que varre o Oriente. Um mês depois do incêndio na Tunísia e uma semana depois da queda de Hosni Mubarak, a revolta escapa do Egito, chega à Líbia – a mais longeva tirania regional – instala-se no Iêmen, no minúsculo Bahrein e retorna revigorada ao Irã, onde talvez tudo tenha começado, há dois anos.
A troca de guarda no Kremlin em 1985 e a entrada em cena de Mikhail Gorbachov explica com relativa facilidade a débâcle soviética e a reunificação alemã. Já o elemento deflagrador desta surpreendente reviravolta no mundo islâmico é mais obscuro, enigmático. Menos linear.
No passado, as teorias conspiratórias logo atribuiriam à CIA a culpa por este tsunami político. Hoje estas teorias não se sustentam: o Egito e o Bahrein são ostensivos aliados dos Estados Unidos. Mais recentemente, ficou na moda identificar o Mossad (serviço secreto israelense) como autor de misteriosas mudanças no cenário oriental. Hipótese inválida neste caso: cada avanço em direção à democracia no mundo islâmico isola mais Israel na sua obsessão suicida de manter a Cisjordânia como território ocupado.
O coronel Kadafi parecia inexpugnável e não apenas pela violência do regime (agora instrumentada por dois de seus filhos), mas pela sua incrível audácia em comprar consciências e alianças. Não lhe foi difícil adquirir um assento no Conselho de Direitos Humanos da ONU, convencer alguns autocratas a indicá-lo como presidente da União Africana e depois candidato a Rei da África ou converter o premiê Silvio Berlusconi em amigo de infância.
Pagou as indenizações às 270 famílias das vítimas do atentado que derrubou o Boeing da Panam em Lockerbie, na Escócia, e conseguiu do governo de Gordon Brown que o único terrorista preso fosse liberado por ser vítima de uma doença terminal. Recebido há mais de seis meses como herói em Tripoli, Abdel Baset al Megrabi está vivinho da silva.
A tese de que o efeito dominó é fruto das novas tecnologias da informação, além de simplista, é exagerada. As redes sociais têm um enorme poder de convocação, mas para que esta convocação produza algum resultado é indispensável a existência de uma massa crítica e um senso de urgência que uma sociedade como a egípcia – muito mais sofisticada do que a da líbia ou a iemenita – incubava há tempos.
Mais plausível é a hipótese de fadiga de material. O desgaste das tiranias, caudilhismos e autocracias é muito maior do que nos sistemas políticos renováveis, plena ou medianamente representativos. Demagogos cansam, seu estoque de truques não consegue produzir mágicas no mesmo ritmo e com a mesma intensidade do mundo real. Hugo Chávez que o diga.
O velho mimetismo, o mesmo que espalhou o vírus do fascismo nos anos 20 e 30 do século passado, este ainda funciona. Seu fruto mais recente é o conservadorismo do movimento Tea Party americano, misto de religião, incultura e ideologia.
Não adianta forçar conclusões e entregar-se às tentações da história instantânea. Este foi o erro dos formuladores da política externa do presidente Lula, que num dos seus arroubos chegou a chamar Muammar Kadafi de “amigo e irmão”.
O dominó mal começou, as combinações das 28 peças pretas com bolinhas brancas ainda não foram completadas, a velocidade de cruzeiro sequer foi alcançada. Importante, por ora, é observar como um grande pedaço do mundo, estático e fechado, finalmente começou a abrir e mover-se.
» Alberto Dines é jornalista.
FONTE: JORNAL DO COMMERCIO (PE)
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