O ESTADO DE SÃO PAULO - 15/02/11
Estou no Egito, em 1995. Arrasto-me por dentro de um túnel estreito, em direção ao remoto fundo da pirâmide, o túmulo de Quefrem. São 50 metros a percorrer nesse buraco de tatu milenar.
Um mendigo rasteja atrás de mim gemendo "batkisk, batkish!" - que quer dizer "esmola". Sou tomado pelo pânico da morte, mas não tenho volta. Há que se rojar na pedra suja até a cripta do faraó, com o coração disparado, o suor frio na alma, o terror de não ter escape a não ser cair no túmulo do rei, lugar onde a morte se abrigou há 4.000 anos.
O mendigo me implorava ajuda até quando chegamos à cripta vazia: "Batkish"! Eu e o mendigo me olhando no buraco do fim. Ele rosnava uns lamentos melódicos e eu pensei que fosse enlouquecer, mas fui salvo por uns norte-americanos, que chegaram bufando do túnel.
A sensação de pequenez, de insignificância, era letal, debaixo de milhões de toneladas de pedras amontoadas.
Eu me sentia uma metáfora da vida de hoje, arrastando-me para longe da miséria, em busca de uma revelação frustrada na tumba e na vida - não havia luz no fim do túnel.
Voltei de quatro como um verme para o deserto e minha angústia aumentou quando saí ao sol e vi (juro que é verdade) um pobre cameleiro de camisola suja e com um boné do Banco do Brasil na cabeça que me sorriu: "Brasil? Bebeto e Romário".
O irreal me tomou de vez, quase desmaiei entre camelos, na vertigem de fatos simultâneos, tudo ao mesmo tempo sem linearidade, sem continuidade: Bebeto, Romário, Quefrem e a Esfinge me olhando. Não havia tesouros ou resposta e me senti como o mendigo, pedindo a esmola de algum sentido.
Em torno das pirâmides, vivi o Egito bem antes do 11 de Setembro, antes da internet e das redes sociais. Eu vi o Egito como o grande museu de uma paralítica sociedade, as casas do Cairo com o lixo no teto, os gritos dos "muezzins" nas mesquitas, os rostos da miséria, a zona geral do país sem rumo sob a ditadura; eu vi a espantosa civilização de milênios no Vale dos Reis seis meses antes de um grupo terrorista degolar 60 turistas alemães em frente à casa da faraó-mulher Hatshepsut, onde estive.
Eu fui ao templo de Ramsés II em Abu Simbel, e vi sua mulher, Nefertari, num baixo-relevo rendado e vi que era a Naomi Campbell, uma núbia negra, deslumbrante, e tudo começou a pesar na minha cabeça, tudo misturado, a manequim de 4.000 anos, o milênio junto com a modernidade, e tudo pesou como uma pedra que cresce e me lembrei do conto de Camus com esse nome, "A Pedra que Cresce", no Brasil, Iguape, onde se passa o relato misterioso de uma situação absurda e reveladora.
REVOLUÇÃO ONLINE
Foi aí que, nesse exato momento do texto que você lê, caro leitor, chegou-me a notícia de que o Mubarak tinha renunciado. E dos milênios antes de Cristo, pulei para 2011.
Na TV, milhões de pessoas celebram o feito extraordinário: um povo sem líderes fez uma revolução sozinho e, sem lênins ou guevaras, mudou a história de 6.000 anos.
Há muito tempo esperamos uma boa notícia, alguma imagem de vitória, neste mundo empacado em impasses, no Oriente, na crise financeira na América e Europa, na falta de solução para o terror. E, de repente, essa notícia gloriosa diante de mim. Creio que a visão de uma revolução ao vivo, online, vai influir muito além do Oriente Médio; talvez chegue até aqui perto, para temor de tiranetes vagabundos como Chávez ou guerreiros gagás como Fidel.
Volto a dizer: no Egito e Tunísia, o "novo" foi uma vitória sem líderes. A revolta e a luta vieram de dentro dos corpos, insuflados por um grande ser sem nome, que vive e respira dentro das redes sociais, na internet - a sociedade não está mais sozinha, há um link entre os cidadãos do mundo.
A tecnociência nos trouxe, sem querer, uma porosidade política que vai estreitar o abismo entre o Estado e a sociedade. O poder não deterá o mesmo "poder" de antes. Não mais a "democracia" de invasão que os Estados Unidos tentaram impor ao Iraque e ao Afeganistão.
Claro que já começam as questões: quem vai organizar o regime, será que os islamitas vão dominar o processo? Ninguém sabe, como ninguém sabia também que isso aconteceria no Egito e na Tunísia.
E esse é um desafio mais profundo: a mutante e veloz aprendizagem das massas, a multiplicação infinita dos desejos sociais e individuais. Já percebemos que, diante dessa novidade, só dispomos de fórmulas políticas lentas, que não sabem acolher as rapidíssimas mutações. Essa mistura de demandas e de fatos novos esbarram no arcaísmo de instituições analógicas para populações da era digital.
Comparem a leveza eufórica dos revoltosos com a resistência do atraso nos EUA, do ódio careta dos republicanos que querem impedir ferozmente que Obama reforme a saúde, combata o desemprego e diminua os impostos para os pobres.
Vejam a obtusidade dos escravos de Hugo Chávez, ou a bovina sujeição de pobres diabos a senhores feudais, no grande "maranhão" que querem para o Brasil.
Quando as informações circularem mais e mais na cabeça dos povos, vai ficar difícil a impunidade eterna dos canalhas.
A tecnociência cria novas formas de liberdade social.
Enquanto filósofos puros quebram a cabeça para evitar a "des-humanização" da vida, enquanto procuram um nexo racional de salvação, pode ser que respostas inesperadas sejam "pensadas" sozinhas nos trilhões de sinapses dos computadores.
Pode até acontecer que essa explosão de liberdade árabe, essa festa na velocidade da luz provoque conflitos até mais duros, com Israel por exemplo; mas, mesmo assim, a verdade será bem-vinda, porque é melhor a roda da história girando do que esta época encalacrada em que vivemos.
Democracia empurrada pela garganta dos países árabes ou a aliança de paz espúria com ditadores vão agonizar e morrer. Mesmo que haja desgraças e catástrofes políticas, creio que a verdade da tragédia é melhor do que a continuação dessa ópera bufa.
Entrevista:O Estado inteligente
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