O Estado de S.Paulo
Vivemos uma fase de democracia virtual. Não no sentido da utilização dos meios eletrônicos e da web como sucedâneos dos processos diretos, mas no sentido que atribui à palavra "virtual" o dicionário do Aurélio: algo que existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual. Faz tempo que eu insisto: o edifício da democracia, e mesmo o de muitas instituições econômicas e sociais, está feito no Brasil. A arquitetura é bela, mas quando alguém bate à porta a monumentalidade das formas institucionais se desfaz num eco que indica estar a casa vazia por dentro.
Ainda agora a devassa da privacidade fiscal de tucanos e de outras pessoas mais mostra a vacuidade das leis diante da prática cotidiana. Com a maior desfaçatez do mundo, altos funcionários, tentando elidir a questão política - como se estivessem tratando com um povo de parvos -, proclamam que "não foi nada, não; apenas um balcão de venda de dados..." E fica o dito pelo não dito, com a mídia denunciando, os interessados protestando e buscando socorro no Judiciário, até que o tempo passe e nada aconteça.
Não tem sido assim com tudo mais? O que aconteceu com o "dossiê" contra mim e minha mulher feito na Casa Civil da Presidência da República, misturando dados para fazer crer que também nós nos fartávamos em usar recursos públicos para fins privados? E os gastos da atual Presidência não se transformaram em "secretos" em nome da segurança nacional? E o que aconteceu de prático? Nada. Estamos todos felizes no embalo de uma sensação de bonança que deriva de uma boa conjuntura econômica e da solidez das reformas do governo anterior.
No momento do exercício máximo da soberania popular, o desrespeito ocorre sob a batuta presidencial. Nas democracias é lógico e saudável que os presidentes e altos dirigentes eleitos tomem partido e se manifestem em eleições. Mas é escandalosa a reiteração diária de posturas político-partidárias, dando ao povo a impressão de que o chefe da Nação é chefe de uma facção em guerra para arrasar as outras correntes políticas. Há um abismo entre o legítimo apoio aos partidários e o abuso da utilização do prestígio do presidente, que, além de pessoal, é também institucional, na pugna política diária. Chama a atenção que nenhum procurador da República - nem mesmo candidatos ou partidos - haja pedido o cancelamento das candidaturas beneficiadas, se não para obtê-lo, ao menos para refrear o abuso. Por que não se faz? Porque pouco a pouco nos estamos acostumando a que é assim mesmo.
Na marcha em que vamos, na hipótese de vitória governista - que ainda dá para evitar - incorremos no risco futuro de vivermos uma simulação política ao estilo do Partido Revolucionário Institucional (PRI) mexicano - se o PT conseguir a proeza de ser "hegemônico" - ou do peronismo, se, mais do que a força de um partido, preponderar a figura do líder. Dadas as características da cultura política brasileira, de leniência com a transgressão e criatividade para simular, o jogo pluripartidário pode ser mantido na aparência, enquanto na essência se venha a ter um partido para valer e outro(s) para sempre se opor, como durante o autoritarismo militar.
Pior ainda, com a massificação da propaganda oficial e o caudilhismo renascente, poderá até haver a anuência do povo e a cumplicidade das elites para com essa forma de democracia quase plebiscitária. Aceitação pelas massas na medida em que se beneficiem das políticas econômico-sociais, e das elites porque estas sabem que nesse tipo de regime o que vale mesmo é uma boa ligação com quem manda. O "dirigismo à brasileira", mesmo na economia, não é tão mau assim para os amigos do rei ou da rainha.
É isto que está em jogo nas eleições de outubro: que forma de democracia teremos, oca por dentro ou plena de conteúdo. Tudo o mais pesará menos. Pode ter havido erros de marketing nas campanhas oposicionistas, assim como é certo que a oposição se opôs menos do que devia à usurpação de seus próprios feitos pelos atuais ocupantes do poder. Esperneou menos diante dos pequenos assassinatos das instituições que vêm sendo perpetrados há muito tempo, como no caso das quebras reiteradas de sigilo. Ainda assim, é preciso tentar impedir que os recursos financeiros, políticos e simbólicos reunidos no Grupão do Poder em formação tenham força para destruir não apenas candidaturas, mas um estilo de atuação política que repudia o personalismo como fundamento da legitimidade do poder e tem a convicção de que a democracia é o governo das leis, e não das pessoas.
Estamos no século 21, mas há valores e práticas propostos no século 18 que se foram transformando em prática política e que devem ser resguardados, embora se mostrem insuficientes para motivar as pessoas. É preciso aumentar a inclusão e ampliar a participação. É positivo se valer de meios eletrônicos para tomar decisões e validar caminhos. É inaceitável, porém, a absorção de tudo isso pela "vontade geral" encapsulada na figura do líder. Isso é qualquer coisa, menos democracia. Se o fosse, não haveria por que criticar Mussolini em seus tempos de glória, ou o Getúlio do Estado Novo (que, diga-se, não exerceu propriamente o personalismo como fator de dominação), e assim por diante. É disso que se trata no Brasil de hoje: estamos decidindo se queremos correr o risco de um retrocesso democrático em nome do personalismo paternal (e, amanhã, quem sabe, maternal). Por mais restrições que alguém possa ter ao encaminhamento das campanhas ou mesmo as características pessoais de um ou outro candidato, uma coisa é certa: o governismo tal como está posto representa um passo atrás no caminho da institucionalização democrática. Há tempo ainda para derrotá-lo. Eleição se ganha no dia.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2010
(1998)
-
▼
setembro
(283)
- Lulambança CARLOS ALBERTO SARDENBERG
- No foco, o câmbio Celso Ming
- De Pomona a Marte Demétrio Magnoli
- O último debate Miriam Leitão
- Do alto do salto Dora Kramer
- Diferenças e tendências Merval Pereira
- De Severino a Tiririca DORA KRAMER
- Mudança de vento Merval Pereira
- O tom do recado Míriam Leitão
- Marolinha vermelha Marco Antonio Villa
- Últimas semanas:: Wilson Figueiredo
- A via sindical para o poder Leôncio Martins Rodrigues
- Por que os escândalos não tiram Dilma do topo José...
- Mais controle de capitais Celso Ming
- A derrota de Chávez EDITORIAL O Estado de S. Paulo
- O papel do STF Luiz Garcia
- O Brasil em primeiro lugar Rubens Barbosa
- Guerra cambial Celso Ming
- O corte inglês Miriam Leitão
- Os mundos e fundos do BNDES Vinicius Torres Freire
- As boquinhas fechadas Arnaldo Jabor
- Sinais de fumaça e planos para segunda-feira:: Ray...
- Faroeste :: Eliane Cantanhêde
- Mais indecisos e "marola verde" :: Fernando de Bar...
- Em marcha à ré :: Dora Kramer
- Marina contra Dilma:: Merval Pereira
- Fabricando fantasmas Paulo Guedes
- Qual oposição? DENIS LERRER ROSENFIELD
- Capitalização e política O Estado de S. Paulo Edit...
- O eleitorado traído Autor(es): Carlos Alberto Sard...
- Como foi mesmo esse maior negócio do mundo? Marco...
- Mary Zaidan - caras-de-pau
- OS SEGREDOS DO LOBISTA DIEGO ESCOSTEGUY E RODRIGO ...
- E agora, Petrobrás? -Celso Ming
- Alerta contra a anestesia crítica:: Carlos Guilher...
- Em passo de ganso e à margem da lei :: Wilson Figu...
- Às vésperas do pleito:: Ferreira Gullar
- A Previdência e os candidatos Suely Caldas
- Todo poder tem limite EDITORIAL FOLHA DE SÃO PAULO
- Forças e fraquezas Miriam Leitão
- Metamorfoses Merval Pereira
- A CONSPIRAÇÃO DA IMPRENSA João Ubaldo Ribeiro
- A posse das coisas DANUZA LEÃO
- A semente da resistência REVISTA VEJA
- LYA LUFT Liberdade e honra
- O gosto da surpresa BETTY MILAN
- Dora Kramer - Lógica de palanque
- Gaudêncio Torquato -O voto, dever ou direito?
- Que esquerda é esta? Luiz Sérgio Henriques
- O mal a evitar-Editorial O Estado de S Paulo
- MARIANO GRONDONA Urge descifrar el insólito ADN de...
- JOAQUÍN MORALES SOLÁ El último recurso de los Kirc...
- A musculatura do PT Ruy Fabiano
- Miriam Leitão Vantagens e limites
- Merval Pereira: "Lula poderá ser um poder paralelo''
- A política em estado de sofrimento :: Marco Auréli...
- ANTES QUE SEJA TARDE MAURO CHAVES
- A imprensa no pós-Lula EDITORIAL O ESTADO DE SÃO P...
- Limites Merval Pereira
- Os segredos do lobista-VEJA
- A concentração anormal-Maria Helena Rubinato
- Sandro Vaia - O juiz da imprensa
- Contas vermelhas Miriam Leitão
- Porões e salões :: Luiz Garcia
- FÁBULA DA FEIJOADA FERNANDO DE BARROS E SILVA
- Margem de incerteza EDITORIAL FOLHA DE SÃO PAULO
- Razões Merval Pereira
- E o câmbio continua matando! Luiz Aubert Neto
- Um passo além do peleguismo O Estado de S. Paulo E...
- As dúvidas acerca do uso do FSB se acumulam- O Est...
- Anatomia de um aparelho lulopetista Editorial O Globo
- Lógica de palanque- Dora Kramer
- Inconsistências no câmbio - Celso Ming
- O resultado da capitalização da Petrobrás : Adrian...
- CARLOS ALBERTO SARDENBERG A falta que nos faz o li...
- Liberdade até para os estúpidos-Ronald de Carvalho
- MÍRIAM LEITÃO Câmbio errado
- O efeito Erenice :: Eliane Cantanhêde
- Tempos petistas:Merval Pereira
- O sucesso do modelo da telefonia O Globo Editorial
- O desmanche da democracia O Estado de S. Paulo Edi...
- Ato insensato - Dora Kramer
- Afrouxar ou não afrouxar- Celso Ming
- A decadência dos EUA - Alberto Tamer
- A cara do cara:: Marco Antonio Villa
- Entrevista:: Fernando Henrique Cardoso.
- Peso da corrupção Miriam Leitão
- Uma eleição sem regras ROBERTO DaMATTA
- Perdendo as estribeiras Zuenir Ventura
- FERNANDO DE BARROS E SILVA A boa palavra de FHC
- MERVAL PEREIRA Prenúncios
- O Fundo Soberano e o dólar O Estado de S. Paulo Ed...
- As contas externas serão o maior problema em 2011 ...
- E no câmbio, quem manda?- Celso Ming
- Autocombustão - Dora Kramer
- Traços em relevo Miriam Leitão
- MERVAL PEREIRA A democracia de Lula
- A ELITE QUE LULA NÃO SUPORTA EDITORIAL O ESTADO DE...
- ELIANE CANTANHÊDE Paulada na imprensa
- ARNALDO JABOR Lula é um fenômeno religioso
-
▼
setembro
(283)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA