BLOG DE BOLIVAR
Trinta anos atrás, quando foi fundado, o PT era uma aglomeração de grupos unidos pela mesma falta de uma idéia. Ou, para não ser tão cáustico, unidos por uma idéia do que não dava mais pé : a luta armada .
Unidos também pelo abandono do modelo soviético de partido comunista : um grupo clandestino de revolucionários profissionais ("poucos, mas bons", segundo Lenin).
O grande ativo inicial do novo partido era Lula, mas um outro ativo logo surgiu, não sei se de forma consciente ou por geração espontânea : um esquematismo ideológico maniqueísta e assaz messiânico.
Estarei eu dizendo que a ideologia petista se transformou num importante ativo justamente por ser esquemática, simplista, maniqueísta e messiânica ? Estou sim. Esse é um dos argumentos que pretendo desenvolver neste artigo.
O outro é que, provavelmente por ser tão raso de idéias, o petismo, ou grande parte dele, resvalou para práticas não muito enobrecedoras.
Simplismo, maniqueísmo : refiro-me aqui à visão do Brasil como um país dividido entre duas entidades imaginárias : "nós, o povo" contra "eles, a elite".
Com esse esquema na cabeça, os petistas reescreveram a história do Brasil e difundiram pelo país inteiro a sua versão. De Pedro Álvares Cabral até o dia em que eles se reuniram para fundar o partido, nada útil teria ocorrido no país.
Era uma rejeição indiscriminada do passado. Nossa história seria um registro uniforme e monótono : uma elite pérfida e gananciosa oprimindo o povo.
E quanto à esquerda, especificamente ? Para se firmar como "a" opção política da classe trabalhadora – escreveu em 2005 o historiador Marco Antônio Villa (2005): "[...] o PT foi construindo uma leitura muito particular da história do Brasil e das lutas operárias. Reinventou o passado, para que a fundação do partido fosse considerada o marco zero da luta de classes no Brasil. Apagaram da história, sem dó, sete décadas de lutas políticas e econômicas".
Claro, o PT não se expandiu só porque tinha Lula ou só porque reinventou a história. Sua expansão deveu-se também ao ambiente econômico do começo dos anos 80 – a "herança maldita" do período militar ; ao surgimento do chamado "novo sindicalismo" e, mais adiante, ao movimento de opinião que resultou no impeachment de Fernando Collor e colocou a questão ética no âmago do debate político nacional.
Essa foi a época gloriosa em que os petistas se declaravam "contra tudo o que aí está". Eles pareciam adorar essa frase. Exclamavam-na com uma firmeza de dar inveja.
Sua convicção não devia provir do conteúdo, pela boa e simples razão de que ela não tinha e não tem conteúdo algum. O que eles sentiam – interpretação minha – era uma gostosa mescla de esquerdismo com udenismo – quero dizer, a crença de que estavam reformando a sociedade com uma pitada de arrogância moral ("self-righteousness", para lembrar uma ótima expressão inglesa).
Em termos eleitorais, o PT só veio a ganhar projeção nacional a partir de 1989, quando Lula foi ao segundo turno contra Collor. Curiosamente, ele foi beneficiado pelo colapso do socialismo na URSS e no Leste Europeu – cuja repercussão mundial foi obviamente enorme.
No Brasil, o anti-comunismo fora até então uma barreira bastante sólida contra o crescimento eleitoral da esquerda, em todos os seus matizes. Sem o comunismo, o anti-comunismo também perdeu importância. Diluiu-se. Minguou.
Como conseqüência, o arco "aceitável" de alianças se ampliou. Setores que antes não se bicavam passaram a colaborar; o clero, por exemplo, passou a ter uma corrente de esquerda muito mais ampla que aquela que se originara na conferência episcopal de Medellín (1976) e na chamada "teologia da libertação".
Quase me esqueço de dizer uma coisa importante. Apesar desse discurso ideológico aguado – e exaltadamente moralista -, o PT continuava "socialista". Só não explicava qual era seu socialismo. O nosso – diziam os petistas – é um socialismo por construir. A ser inventado.
Um cínico poderia dizer que eles estavam pedindo um cheque em branco. Uma pessoa imbuída de sentimento bíblico diria que o socialismo deles não era deste mundo.
Não podendo explicar em termos positivos de que socialismo se tratava, os petistas o faziam pela negativa. Seu modelo – como notei acima – não seria a ditadura de partido único ainda imperante na URSS, no Leste da Europa e em Cuba.
Em certo aspecto, a intuição petista era certeira. O socialismo "realmente existente" – como se dizia na época – ia muito mal das pernas. Perdia prestigio a cada 15 minutos e caminhava a olhos vistos para o colapso econômico.
Em 1992, o modelo soviético já podia ser dado por morto, mas, semelhante a um lagarto, ainda apresentava movimentos convulsivos. Percebendo as vacilações de Gorbachev, a linha dura tenta reverter o processo de "abertura" . Ensaia um golpe de Estado. Boris Yeltsin reage e enquadra o próprio Gorbachev.
No Brasil, a TV noticiava os acontecimentos e transmitia comentários, inclusive de antigos estalinistas. Lembro-me de João Amazonas e Oscar Niemeyer solidarizando-se com os golpistas. João Amazonas, tudo bem, mas Niemeyer…Nem tudo é perfeito.
Volto à cena política brasileira. No transcurso dos anos 80 e 90, o PT escudou-se em seu maniqueísmo messiânico para se posicionar contra tudo e todos – e, naturalmente, para capitalizar no plano eleitoral os desgastes que os demais partidos fatalmente iriam sofrer.
A idéia era lucrar com as mudanças sem assumir responsabilidade por elas. Foi assim que o PT vetou a participação de seus parlamentares no Colégio Eleitoral e expulsou os que optaram por comparecer e votar em Tancredo Neves ; participou da Assembléia Constituinte, mas recusou-se a assinar a Constituição de 1988 ; capitalizou a queda de Collor, mas não autorizou a participação de seus membros no governo em seguida constituído pelo vice, Itamar Franco, chegando mesmo a expulsar Luísa Erundina, que aceitou um ministério ; bateu de frente com o Plano Real, peça-chave da estabilização iniciada em 1994 ; e votou sistematicamente contra as propostas legislativas do governo Fernando Henrique.
Com o tempo, porém, à medida em que o partido ia elegendo prefeitos em cidades importantes, as incursões de petistas na esfera do ilícito foram se tornando freqüentes.
Mexe e vira, chegamos a 2002. Duda Mendonça – aquele mesmo que poucos anos depois confessaria na TV ter recebido por fora algo em torno de 10 milhões de dólares -, colocou no programa gratuito de Lula uma meia centena de mulheres grávidas vindo na direção do telespectador ao som do "Bolero" de Ravel.
Beleza pura !
Eleito presidente, a primeira providência de Lula foi esquecer o que antes dizia (conforme o PT antecipara na "Carta aos Brasileiros") sobre política econômica. Manteve intacto o modelo do governo Fernando Henrique (vituperando-o, quand même , como uma "herança maldita").
Em 2004 aparece Valdomiro Diniz. Em seguida, o mensalão. Em seguida…
Abro aqui um parêntesis para contar uma de minhas manias. Eu sou um inveterado ajuntador de papéis – atualmente de arquivos, óbvio, pois agora é tudo em computador. De tempos em tempos eu faço uma faxina, trabalho que acaba demorando bastante, pois não resisto a ficar lendo uma parte do que arquivei.
Outro dia eu me deparei com um belo artigo do Frei Betto. Texto erudito, bem escrito, uma leitura realmente prazerosa. Saiu na Folha de S. Paulo. A certa altura ele cita o "Eduardo III", de Shakespeare : "os lírios que apodrecem fedem muito mais que ervas daninhas".
Dito isso o ilustre frei retorna à cena brasileira : "Dinheiro vivo na boca do caixa…[...]
Protegidos pelo manto da imunidade, eles se abrigam na escuridão, posando de vítimas ao relampejar dos holofotes da mídia. Aqui embaixo somos envenenados pelo cheiro da podridão [...]". E fulmina : "… quando a repulsa paralisa a platéia, a impunidade campeia".
Mas o que é isto que estou lendo ? pensei. O Frei Betto desancando o mensalão e até convocando a platéia a dirigir sua repulsa contra os atores ?
Olhei a data : 12 de julho de 2007. Olhei o título : "A Senatorial República". Portanto, não era ao mensalão a referência principal do artigo : por que haveria o Betto de detonar o Senado naquele contexto?
Fui pesquisar a data. Ah sim, entendi. Tratava-se do affair Renan Calheiros . Então presidente do Senado, o ilustre homem público alagoano estava por um fio, metido numas complicações de compra de gado, lobby e não sei mais o quê.
No Senado, a posição mais contundente contra Renan – estou aqui me baseando numa excelente matéria assinada por Otávio Cabral na Veja de 04.07.07 – foi a do PFL, exigindo que ele deixasse o comando da Casa.
Pressionado para valer, Renan procurou o pessoal do PT, exigiu a destituição de um petista da comissão de ética e se queixou da demora de Lula em recebê-lo . Estava tentando havia cinco dias.
Foi então que Renan parou os trabalhos e sentou em cima de algumas matérias de interesse do governo.
Na noite desse dia – arremata Otávio Cabral -, "Lula encerrou seus cinco dias de silêncio e convidou Renan para uma conversa no dia seguinte. Ao presidente, Renan fez a catilinária de praxe.
Disse que haveria a ameaça de crise de governabilidade e que tudo não passava de disputa antecipada sobre a sucessão de 2010. Parece que Lula acreditou na patacoada, ou tem outros temores sobre os saberes de Renan, pois orientou seus líderes a trabalhar pelo senador – e, com isso, tudo mudou".
Bom, eu também já posso ir arrematando por aqui. A essa altura – 2007 -, Lula já se sentia acima do bem e do mal. Talvez até já estivesse querendo imitar Zeus, que tirou uma candidata de sua cabeça.
Quem pode o mais, pode o menos – como dizem os advogados. Quem tira uma candidata da cabeça, por que haverá de respeitar meras leis eleitorais, coibir desmandos na Receita ?
Se quiser, quem o impede de "extirpar" a oposição ?
Os poderes do Olimpo só não se mostraram suficientes no caso do terceiro (aliás terceira) titular da Casa Civil, a doutora Erenice Guerra. Alvejada pelas revelações da Veja e da Folha, ela não teve como se manter no palco. Afundou nele, abrindo no chão um senhor rombo.
Devo porém confessar que a frase do Frei Betto ainda ecoa em meus ouvidos : "… quando a repulsa paralisa a platéia, a impunidade campeia".