O GLOBO - 26/09/10
Dilma Rousseff construiu uma versão para a história econômica recente e é protegida de si mesma pela armadura do marketing. José Serra abandonou a identidade que poderia ter e se debate num projeto sem rosto. Marina Silva tem a cara do novo, mas se perde na ambiguidade em relação ao seu antigo partido. Os três têm também forças. Eles nos levarão às urnas em uma semana
No período em que o Brasil se debateu contra a ditadura, Dilma e Serra se perfilaram no grupo que ficou contra o autoritarismo. Lutaram de forma diferente, mas foram contra o arbítrio e ambos pagaram um preço por isso. Marina, mais nova que os dois, também entrou na vida política pela oposição ao regime, e ingressou na vereda que virou o grande caminho do futuro: o do respeito aos limites do planeta.
Nenhum dos três é filho de oligarquias. A situação social em que Dilma nasceu foi melhor do que a de Serra, mas Marina é que cumpriu o mais espantoso roteiro de superação: da pobreza do Seringal Bagaço à senadora mais jovem da República.
Expulsa do paraíso petista, não por seus pecados, mas por suas virtudes, Marina comemorou num fiapo de resposta de Dilma, num debate recente, ter sido reconhecida como parte do governo Lula.
Aceita dividir com Dilma os louros de sua maior vitória pelo meio ambiente: a queda do desmatamento.
Os bancos oficiais continuam financiando as atividades que abatem árvores e esperanças; as grandes obras, que sua adversária brande como eixo do seu projeto, para a alegria das empreiteiras, ferem o coração da Amazônia; o modelo energético de Dilma aumentou a presença da energia fóssil na economia. As duas têm visões opostas sobre a questão ambiental e climática, mas Marina nunca foi capaz de confrontar sua adversária e revelar os conflitos entre elas.
O governo criou uma fábrica de números falsos em seus bem-aparelhados órgãos oficiais e reescreveu a história recente do país. Como a memória sempre foi fraca por aqui, fica-se assim entendido o falso como verdadeiro. Brigar com cada número resultaria numa discussão enfadonha, mas basta dizer que, em sete anos de governo e quatro de PAC, o saneamento básico saiu de 56% para 59%.
Ou seja, nada aconteceu no que há de mais intestino da qualidade dos serviços públicos, raiz da saúde e do meio ambiente urbano. Diante do falso brilhante dos trilhões que ela declama, o investimento público é de apenas 1,3% do PIB.
A verdade, para além do aborrecido traçar de números, é que, há décadas, o governo investe pouco e tira da sociedade cada vez mais impostos.
A carga tributária sobe constantemente, o governo tem déficit nominal, o rombo da previdência avança.
Mas Dilma repete a todos que ajuste fiscal é burrice. Anestesiados, os contribuintes continuarão pagando a conta sem sequer entendê-las.
Pela distorcida história oficial, a inflação não foi vencida no Plano Real, quando estava em 5.000%, tinha derrotado cinco planos, engolido décadas e arruinado famílias e empresas. A versão da campanha é que Lula recebeu um país em destroços.
Quem repõe a verdade vivida há tão pouco tempo? Deveria ter sido José Serra, mas ele não quis ou não soube.
Dissidente da política econômica que nos trouxe a tão sonhada estabilidade, ele ainda se pega em minúcias das discordâncias. Não conseguiu mostrar para o eleitor que, pela ação da privatização, um povo que tinha telefone em 19% das casas, hoje tem em 85% delas. Um país que vivia o tormento hiperinflacionário teve em Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, o líder que convocou os especialistas e arquitetou o plano que iniciou o novo Brasil. Só Marina tenta repor a verdade, ao lembrar fatos e distribuir méritos com sua serenidade destoante.
Serra não resgata o passado prisioneiro dos mitos do marketing petista; não consegue dizer o que fará de novo, se for eleito. O "pode mais" vazio acabou virando uma oferta de mais salário mínimo e mais aposentadoria. Com a eloquência do passado real e uma proposta consistente para o futuro, Serra poderia mais, mas sua campanha ficou sem rosto e projeto.
Marina tem a força de propor o novo. Tão novo que nem é entendido. Propõe uma revisão do conjunto dos estímulos e pesos tributários para crescer e incentivar a transição para a economia de baixo carbono. Hoje, carvão colombiano recebe redução de impostos para entrar no país, alimentar termelétrica financiada com dinheiro subsidiado do BNDES. E o país acha normal. O banco financia frigoríficos que compram carne de área desmatada. E o país acha normal. Uma farra com dinheiro público é montada para liquidar a grande volta do Xingu, num crime duplo: ambiental e fiscal. E o país acha normal.
Dilma tirou o máximo de proveito da segunda etapa do processo de criação do mercado de consumo de massas.
A primeira etapa foi o Plano Real. A segunda, no governo Lula, foi possível com a oferta de crédito e a ampliação dos programas de transferência de renda. Dos três candidatos, é a mais desconhecida dos eleitores. Eles votam numa miragem construída pela popularidade do Lula e pela propaganda.
Foi enclausurada pelo marketing por medo de que seu temperamento pusesse tudo a perder.
Os três têm forças e fraquezas, mas as distorções da campanha mostram que o país está desperdiçando o melhor momento de pensar estrategicamente seu futuro
Entrevista:O Estado inteligente
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