DEU NA FOLHA DE S. PAULO /ILUSTRADA
Situo-me no polo oposto àqueles que aspiram chegar a uma sociedade de uma opinião só
A proximidade do dia das eleições, quando iremos às seções eleitorais exercer nossa cidadania, votando nos candidatos de nossa preferência, tem inevitavelmente acirrado os ânimos, não só dos candidatos, como os nossos, de eleitores.
Isso pode ser bom ou mau. É bom quando indica empenho em escolher os melhores para legislarem e governarem -e é mau quando nos leva a perder a capacidade de discernir o certo do errado, a mudar a convicção política ou ideológica em fanatismo.
Sem pretender me dar como exemplo de isenção, verifico, não obstante, como algumas pessoas passam dos argumentos objetivos -ainda que impregnados de paixão- a afirmações que mitificam a personalidade deste ou daquele candidato.
Como já escrevi aqui, repito agora que não pertenço a partido político nem tampouco estou engajado na campanha de nenhum candidato. Ao opinar sobre qualquer deles, faço-o na condição de articulista que, assim como discute questões culturais e sociais (arte, política psiquiátrica, inoperância da Justiça, ficha suja etc.), discute também a conjuntura política que, neste momento, interessa à maioria dos leitores.
Podem meus comentários, eventualmente, influir na decisão de um ou outro leitor, mas não é essa minha intenção prioritária e, sim, contribuir para que sua escolha se faça da maneira mais lúcida e autônoma possível. Acresce o fato de que outros comentaristas opinarão em sentido diverso, trazendo à baila outros argumentos e, com isso, contribuindo para que o debate se amplie e se aprofunde. Situo-me no polo oposto àqueles que aspiram chegar a uma sociedade de uma opinião só.
É com esse propósito que tenho abordado aqui alguns aspectos polêmicos da conjuntura eleitoral e política. Procuro, igualmente, refletir a preocupação de outras pessoas que, mantendo-se à margem da disputa eleitoral, manifestam preocupação com o rumo que as coisas estão tomando, sendo que alguns deles temem pelo futuro da própria democracia brasileira.
Para estes, a vitória de Dilma Rousseff, por implicar o prosseguimento no poder do mesmo partido, poderia ter consequências imprevisíveis, dado o crescente aparelhamento da máquina do Estado por petistas e sindicalistas, que a utilizam partidariamente.
Isso poderia levar à crescente privatização do Estado, em benefício de um mesmo grupo político e, em última instância, ao cerceamento da ação política divergente.
Faz parte deste processo a mitificação da figura de Lula que, no curso de sua história pessoal, passou de líder raivoso a Lulinha paz e amor e agora -para meu espanto- à categoria de grande estadista, que teria mudado a face do Brasil.
Nessa linha de raciocínio, vem se formando a teoria segundo a qual quem se opõe a Lula opõe-se na verdade ao povo brasileiro, uma vez que ele é o primeiro presidente, "que veio do seio do povo".
Trata-se de um argumento curioso, que busca qualificar o indivíduo -no caso, um líder político- por sua origem social de classe. Digo curioso porque os que assim argumentam consideram-se obviamente de esquerda, mas não se dão conta de que, com esta postura, repetem as elites do passado, que também qualificavam os indivíduos por sua classe social de origem.
Naquela visão -que a esquerda definia como reacionária-, quem tivesse origem nobre era tacitamente superior a quem não o tivesse. Agora, na sua inusitada avaliação, superior é quem nasce do "seio do povo" e, por isso, quem critica Lula coloca-se, na verdade, contra o povo. E povo - entenda-se - é só quem for pobre.
Mas atrevo-me a pergunta: e quem não recebe Bolsa Família é o que?
Não resta dúvida de que a ascensão de um operário à Presidência da República brasileira é uma importante conquista de nossa democracia, mas não porque quem nasce no seio do povo venha impregnado de virtudes próprias aos salvadores da pátria. Do seio do povo também veio Fernandinho Beira-mar.
Lula chegou onde chegou não por sua origem e, sim, por sua capacidade de liderança e sua sagacidade política; a origem social e a condição de operário, que certamente influíram na decisão do eleitor, não devem servir de pretexto para transformá-lo num líder a quem tudo é permitido, acima de qualquer juízo crítico.
Entrevista:O Estado inteligente
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