O Estado de S.Paulo - 26/09/10
Acho que já contei aqui que, sempre que se fala em conspiração da
imprensa, recalques antigos despertam no meu coração de jornalista.
Meu primeiro emprego, aos 17 anos, foi em jornal e, de lá para cá,
nunca cheguei a me afastar muito da profissão. E é com sentimentos um
pouco ambivalentes que recordo jamais haver sido chamado para
conspiração nenhuma, em jornal ou revista alguma. Pior ainda, nunca
nem me deram a ousadia de me pôr a par da conspiração com que eu,
afinal, mesmo quando era o mais humilde dos focas, estaria
colaborando. Finjo que não ligo, mas vez por outra isso me dá um certo
baque na autoestima, creio que vocês compreendem.
Em relação a subornos, meu recorde talvez seja até mais humilhante.
Uma vez, quando eu era chefe de reportagem de um jornal de Salvador, o
promotor de um evento me mandou dois litros de King"s Archer
("Arqueiro do Rei"), uísque nacional do qual na época se dizia
desfechar uma letal flechada no fígado de quem o encarasse. Além
disso, sem que eu desconfiasse de nada, pegaram as garrafas na
portaria, beberam tudo e só me contaram meses depois, impondo-se a
embaraçosa conclusão de que fui subornado sem saber - ou seja, nem a
ser subornado direito eu acertei. E, quando eu era editor-chefe de
outro jornal, um prefeito do interior, que estava sendo denunciado por
escancarada corrupção, me ofereceu um velocípede para cada uma de
minhas filhas. Ao lembrar a maneira com que o repeli, manda a
honestidade reconhecer que minha indignação também se deveu ao valor
da oferta, o miserável podia pelo menos ter oferecido uma bicicleta.
No meu tempo de metido a comunista, escrevi para jornais controlados
pelo Partidão e nem nesses me inteiravam das conspirações. No máximo,
havia uma palavra de ordem ou outra, que a arraia-miúda repetia em
rodas de cerveja e para as quais ninguém parecia ligar muito. Nas
eleições presidenciais de 1960, quando votei pela primeira vez,
limitaram-se a me dizer que o partido apoiava o marechal Lott e nunca
me explicaram por quê. E, quanto ao famoso ouro de Moscou, no qual se
cevavam os comunistas, não só nunca vi sinal dele, como acredito que
os comunistas meus amigos tampouco - foram eles os que roubaram e
beberam os dois litros de King"s Archer.
Agora as suspeitas ou certezas de que há conspirações da imprensa em
andamento voltam a circular. Creio que, quando se sente em si a
encarnação do próprio povo, como parece estar acontecendo com o
presidente Lula, deve ser difícil suportar notícias e opiniões
discordantes ou mesmo apenas desagradáveis. Para ele, é bem possível
que a imprensa seja até ingrata, porque, se ainda está aí, é porque
ele quer, como, aliás, tudo está aí porque ele quer. A democracia e a
liberdade são fruto de sua tolerância, pois, afinal, está claro que
ele vê sua legitimidade como emanada diretamente do povo, sem a
intermediação de quaisquer outros mecanismos ou a necessidade de
instituições. E, nas horas de maior arroubo, talvez a virtude que ele
acredite mais praticar seja a da paciência. Ele sabe o que o povo
quer, o povo quer o que ele quer, que mais interessa? De fato, deve
ser enervante ficar suportando essas contrariedades, quando se podia
resolver tudo sem complicações supérfluas e inúteis. Haja paciência
mesmo, devemos ser gratos por tanta paciência.
Como estará a conspiração agora? Minha falta de experiência não ajuda,
mas fico imaginando salas hollywoodianas no alto de um arranha-céu na
Avenida Paulista, em que os conspiradores se juntam para sua atividade
golpista. Que estarão arquitetando esses grandes e facinorosos
bandidos? Não se sabe, mas certamente moverão uma guerra feroz contra
os bancos e os banqueiros. Afinal, nenhum setor ganhou ou ganha tanto
neste país quanto eles, tudo está a favor deles. E, segundo se diz,
eles demonstram sua gratidão através de contribuições generosíssimas
para a campanha eleitoral em que está empenhado o governo brasileiro.
As grandes empresas também andam faturando alto, o capitalismo está
feliz, mais feliz que em seus melhores sonhos. Tal situação certamente
incomoda a chamada grande imprensa, esse tradicional bastião
anticapitalista. Deve ser por isso que ela deve estar tramando o
golpe. E, claro, para que o golpe dê certo, precisam de um nome que
tenha aceitação popular, que seja aclamado e não rejeitado. Ou seja, o
próprio presidente Lula. Vocês vejam como essas coisas da política são
paradoxais. Assim de primeira, ninguém diria, mas conspiração é
conspiração, não vamos dar muito palpite no que não entendemos
direito.
A imprensa é de fato um problema. Quase ninguém se lembra, mas a
profissão de jornalista está entre as mais arriscadas e todo dia algum
é vítima de violência. A primeira ação das ditaduras, universalmente,
é a supressão da liberdade de opinião e o cerceamento de sua expressão
pela via legítima que é a imprensa. Subsiste a realidade de que, desde
que o mundo é mundo, a divergência desagrada aos poderosos, a crítica
os ofende e qualquer opinião que não coincide com as suas é uma
agressão. Um dos recentes pronunciamentos do presidente Lula sobre a
imprensa mostrava uma animosidade truculenta comparável à de seu
aliado Fernando Collor. A imprensa é vista como inimiga da nação,
praticamente a responsável por tudo o que de errado acontece entre
nós. Os mais velhos já viram tudo isso. Os jornalistas mais velhos já
viveram tudo isso. E tudo, afinal, passou, assim como também passará o
que estamos presenciando agora. As voltas que o mundo dá são tão
prodigiosas que o presidente Lula, já ex-presidente, logo tornará a
gostar da imprensa. E a precisar dela, como já precisou, pois que, no
sábio dizer de nossos maiores, dor de barriga não dá uma vez só.
Entrevista:O Estado inteligente
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