Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 05, 2009

O Rei Branco, de György Dragomán

Uma infância no inferno

Um belo romance sobre como é crescer numa sociedade totalitária


Nelson Ascher


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O romance O Rei Branco, do jovem autor húngaro György Dragomán (tradução de Paulo Schiller; Intrínseca; 256 páginas; 29,90 reais), é uma obra surpreendentemente madura e realizada sobre uma idade crucial: a passagem da infância à adolescência. Seu protagonista, Dzsáta, é um filho único de cerca de 11 anos, que vive só com a mãe num país do bloco soviético durante os anos 80, pois, pouco antes, seu pai fora preso por motivos políticos e enviado a um campo de trabalhos forçados. (O próprio autor, nascido em 1973, passou seus quinze primeiros anos na Romênia do casal Ceausescu antes de emigrar para a Hungria.) Enquanto espera o regresso não garantido do pai, o menino tenta sobreviver como pode tanto às crises típicas de sua idade, como às de um mundo particularmente impiedoso.

Como Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, filme iugoslavo de 1985 de Emir Kusturica, a história é narrada do ponto de vista do garoto, só que sem nenhuma concessão ao lirismo redentor. O autor dá a entender, desde o primeiro capítulo, que o que vai expor poderia ser chamado de Aventuras de Tom Sawyer no Inferno. Conduzido pelo fio tênue do monólogo interior, o romance compõe-se de uma sucessão de quadros que, aparentemente desconexos, terminam por descortinar o panorama de uma sociedade que, condicionada desde cima pela crueldade, multiplica-a em quase todos os encontros interpessoais. Nela, até mesmo uma partida de futebol escolar se transforma em horror porque o treinador é um sádico e o campo foi contaminado pelo acidente nuclear de Chernobyl. Nunca há ninguém a quem recorrer, nenhuma autoridade justa ou bondosa à qual reclamar. O Rei Branco retrata, com riqueza de detalhes, quanto se degrada, num universo totalitário, a vida das pessoas comuns e até que ponto muitas já combinavam em si as características da vítima e do torturador.

Uma das virtudes de Dragomán é ter conseguido capturar com precisão o modo peculiar, às vezes desinformado e imaginativo, às vezes pragmático e perceptivo, como um menino dessa idade vê o mundo em volta. O leitor sente a apreensão do protagonista, adivinha, segundos antes, a desgraça seguinte, mas nem por isso consegue evitar o sobressalto. E é em meio a sustos, trotes, surpresas desagradáveis que Dzsáta vai crescendo, preparando-se para os próximos golpes e se fortalecendo. A tradução de Paulo Schiller, que já verteu para o português muitos dos melhores romances do também húngaro Sándor Márai, preserva o ritmo exato de uma prosa cujas frases sinuosas constroem com cuidado situações elaboradas para levá-las, de forma sempre certeira, a um desfecho inesperado.

Divulgação
SEM SAÍDA
Dragomán: até jogar futebol é um horror
se o treinador é sádico e o campo está
contaminado por radiação


LIVROS

Trecho de O Rei Branco, de György Dragomán

Tulipas

De noite enfiei o despertador debaixo do travesseiro, para que somente eu ouvisse o alarme e minha mãe não acordasse, mas o relógio nem sequer tinha tocado e eu já estava de pé, de tanto que havia me preparado para a surpresa. Peguei a lanterna chinesa niquelada na escrivaninha, tirei o despertador de baixo do travesseiro, o iluminei, eram quinze para as cinco, desliguei o alarme para que não tocasse, depois tirei do encosto da cadeira as roupas que tinha preparado de noite e me vesti apressado, tomando cuidado para não fazer barulho. Enquanto vestia a calça, sem querer chutei a cadeira, que por sorte não caiu, apenas bateu na mesa, a porta do quarto eu também abri com cuidado, embora soubesse que não rangeria, porque na véspera eu havia lubrificado as dobradiças. Fui até o bufê, abri bem devagar a gaveta do meio, tirei a grande tesoura de costura com que minha mãe costumava aparar meus cabelos, em seguida abri a fechadura Yale da porta de entrada, e muito silenciosamente saí, até a primeira curva da escadaria não corri, só depois comecei a descer as escadas às pressas. Quando cheguei diante do edifício eu estava todo suado, assim fui para o pequeno parque, porque lá, junto da fonte, no canteiro enfeitado, cresciam as mais lindas tulipas da cidade.

À época estávamos havia mais de meio ano sem meu pai, que viajaria por apenas uma semana para um centro de pesquisa, por conta de um assunto muito urgente, quando se despediu de mim ele disse que sentia muito não poder me levar com ele, porque o mar, naquele período, no final do outono, era uma visão verdadeiramente inesquecível, muito mais agitado que no verão, formava ondas amarelas imensas, até onde os olhos viam tudo era espuma branca, não faz mal, prometeu que quando voltasse para casa ele me levaria para o mar e o mostraria para mim, ele não compreendia como havia acontecido de eu já ter passado dos dez anos e nunca ter visto o mar, paciência; compensaríamos isso e as outras coisas a serem compensadas, não tínhamos de nos atropelar com nada, haveria tempo de sobra para tudo porque a vida estava diante de nós, essa era uma frase favorita de papai, eu nunca entendi muito bem o significado, já que ele não voltou para casa, pensei nisso muitas vezes, a despedida também me ocorreu muitas vezes, da última vez que o vi seus colegas vieram buscá-lo num furgão cinza, eu acabava de chegar da escola quando saíam, se não tivesse perdido a última aula, de ciências naturais, eu nem os teria encontrado, acabavam de entrar no furgão quando cheguei, tinham muita pressa, seus colegas não queriam que ele falasse comigo, mas meu pai falou duro com eles, disse que não deveriam fazer aquilo, eles também tinham filhos, sabiam como eram essas coisas, cinco minutos não fariam diferença, e então um de seus colegas, um homem de paletó cinza, alto, grisalho, deu de ombros e disse que não se importava, cinco minutos não fariam de fato diferença, e meu pai se aproximou de mim, parou na minha frente, mas não fez nenhum carinho, nem me abraçou, ficou segurando o paletó o tempo todo, segurou-o diante de si com as duas mãos e contou a coisa do mar, e de que precisavam dele com urgência no centro de pesquisa, ficaria lá durante uma semana, se a situação fosse muito grave talvez um pouco mais, até que resolvesse as coisas, e então ele falou um pouco mais sobre o mar, mas depois o colega alto grisalho se aproximou e pôs a mão no ombro de papai e o chamou, senhor doutor, os cinco minutos passaram, temos de ir porque podemos perder o avião, meu pai se abaixou, me deu um beijo na testa, mas abraçar ele não me abraçou, e pediu que cuidasse de mamãe, que fosse um bom menino, porque eu seria o homem da casa, de modo que deveria me valorizar, e eu disse que estava tudo bem, eu me comportaria, e ele deveria cuidar de si, e o colega dele olhou para mim e disse: "Não se preocupe, malandro, nós vamos cuidar do doutor", estalou a língua, depois abriu a porta lateral do furgão e ajudou meu pai a se sentar, o motorista ligou o motor, e assim que a porta do meu pai se fechou, eles partiram, eu apanhei a mochila da escola, dei meia-volta e fui na direção da escadaria, porque tinha arrumado um novo atacante para o time de futebol de botão e queria experimentá-lo para saber se deslizava verdadeiramente bem, tão bem sobre lona quanto sobre cartolina, não fiquei lá e também não acenei nem acompanhei o furgão, não esperei que desaparecesse no final da rua. Lembro-me bem do rosto de papai: estava barbudo, cheirava a cigarro, parecia muito, muito cansado, o sorriso também era desanimado, pensei bastante, mas não acho que ele desconfiasse que não voltaria para casa, passada uma semana, recebemos apenas uma carta: ele escrevia que a situação era muito mais grave que o esperado, não poderia dar detalhes por razões de segurança de Estado, mas teria de ficar lá por mais algum tempo, se tudo corresse bem em algumas semanas talvez lhe dessem um ou dois dias de folga, mas por enquanto precisavam dele o tempo todo. Desde então, ele mandou mais algumas cartas, a cada três ou quatro semanas, e em todas escrevia que logo voltaria para casa, mas depois ele não pôde vir nem para o Natal e também para o Ano-novo nós o esperamos em vão, e já estávamos em abril e nem cartas chegavam mais, e eu comecei a pensar que papai talvez tivesse fugido do país, como o pai de um colega meu de classe, Egon, que atravessou o Danúbio a nado e foi para a Iugoslávia e de lá para o Ocidente, e desde então ninguém teve notícia dele, nem sequer sabiam se estava vivo.

Passei por trás dos blocos de apartamentos porque não queria encontrar ninguém, não queria que me perguntassem para onde eu ia de madrugada. Por sorte não havia gente, de modo que passei por cima da corrente com calma, entrei no canteiro, no meio das tulipas, peguei a grande tesoura e comecei a cortar as flores, bem embaixo, cortei os talos rente à terra, minha avó tinha dito uma vez que quanto mais embaixo aparamos as tulipas mais elas duram, era melhor cortá-las com as folhas, de início eu só queria cortar vinte e cinco botões, mas perto dos quinze eu perdi a conta, de modo que passei a cortar uma depois da outra, meu casaco ficou todo úmido, minha calça também, eu não me incomodei, pensei no meu pai, que ele também fazia a mesma coisa todos os anos, ele também devia cortar as tulipas assim a cada outono, minha mãe contou, muitas vezes, que meu pai tinha pedido a mão dela com tulipas, ele a cortejara com buquês de tulipas, e comemorava os aniversários de casamento deles com tulipas, todo dia 17 de abril ele a surpreendia com buquês imensos, de manhã, quando ela acordava, as flores sempre estavam sobre a mesa da cozinha, e eu sabia que naquele momento eles comemorariam quinze anos, e eu queria que minha mãe ganhasse um buquê maior que todos os anteriores.

Cortei tantas tulipas que não conseguia mais segurá-las, enquanto procurava abraçar as flores o buquê escorregou das minhas mãos, e então eu deitei as tulipas no chão a meu lado, sacudi o orvalho da tesoura, e continuei a cortar um talo depois do outro, enquanto pensava no meu pai, que ele também com certeza usava a mesma tesoura, olhei para as minhas mãos, procurei imaginar as mãos do meu pai, mas sem sucesso, porque só via as minhas próprias mãos brancas, magras, os meus dedos nos buracos gastos da tesoura, e então um velho gritou comigo perguntando o que eu estava fazendo, mandou que fosse até ele imediatamente, o que eu estava pensando cortando aquelas flores sem mais nem menos, era bom que eu soubesse que ele chamaria a polícia e eu iria para um reformatório, que era o meu lugar, olhei para ele, por sorte não era um conhecido, de modo que gritei para que ele calasse a boca, roubar flores não era crime, em seguida pus a grande tesoura no bolso, peguei as tulipas no chão com as duas mãos, algumas ficaram por lá mesmo, depois pulei do canteiro pelo outro lado, ouvi que ele gritava às minhas costas que eu deveria me envergonhar do modo como falava, fosse como fosse ele anotaria o número da minha braçadeira, mas eu não olhei para trás porque sabia que ele não tinha como anotá-lo, porque eu estava de propósito com o casaco que não tinha a braçadeira com o meu número da escola, de modo que corri para casa, segurando as flores com as duas mãos para que não quebrassem, os bulbos das tulipas batiam uns contra os outros, de vez em quando encostavam no meu rosto, as folhas largas também farfalhavam, o cheiro era de grama recém-cortada, só que muito mais forte.

Quando cheguei ao quarto andar, parei diante da porta e me agachei, deitei cuidadosamente as flores sobre o capacho, depois me levantei e devagar abri a porta da entrada, passei por cima das flores e depois fiquei ali no hall escuro, atento. Por sorte minha mãe não tinha acordado, de modo que eu levei as tulipas para a cozinha, pus todas sobre a mesa, entrei na despensa, da prateleira mais baixa tirei o maior vidro de picles, levei-o à torneira, enchi-o de água, depois o coloquei sobre o centro da mesa da cozinha e enfiei nele as tulipas, tantas que não couberam todas no vidro, sobraram umas dez, estas eu pus na pia, depois fui até a mesa e ajeitei os talos como pude, mas não tive muito sucesso, por causa das folhas as tulipas estavam bem desarrumadas, havia umas muito curtas, outras muito compridas, vi que teria de igualar os talos se quisesse que o buquê ficasse com uma boa aparência, e então me ocorreu que se eu pegasse a grande tina de lavar roupas no armário todas as flores caberiam nela, e talvez eu não precisasse cortar os talos, por isso voltei à despensa, abri-a, me abaixei e puxei a grande tina de baixo da prateleira, quando ouvi a porta da cozinha se abrindo, e também ouvi minha mãe perguntando quem era, se havia alguém ali, ela não tinha me visto porque a porta da despensa me cobria, mas pela fresta da porta eu vi que ela estava lá, com a camisola branca comprida, descalça, e eu vi seu rosto ao olhar as tulipas, ficou completamente branca, apoiou-se na porta com uma das mãos, a boca se abriu, pensei que fosse sorrir, mas o rosto era mais de quem queria gritar, como se estivesse muito enfurecida, ou como se sentisse muita dor, o rosto se contorceu todo e os olhos também se fecharam, ouvi que respirava com muita dificuldade, e então ela correu os olhos pela cozinha, e quando viu a porta da despensa aberta largou o umbral e tirou o cabelo da testa, deu um suspiro profundo e perguntou: meu filho, é você?, e eu não disse nada, só saí de trás da porta da despensa e parei junto da mesa, e disse que queria lhe fazer uma surpresa, rogava que não ficasse brava, a intenção era boa, só o tinha feito porque meu pai havia pedido que enquanto ele não estivesse eu fosse o homem da casa, e percebi então que minha mãe tentou sorrir, mas nos olhos dela eu via que ainda estava muito triste, disse que não estava brava, a voz era grave e áspera, não estava brava e agradecia muito, e ao dizer isso ela se aproximou de mim e me abraçou, mas não como das outras vezes, mas muito, muito mais forte, me apertou contra si com muita força, como uma vez em eu que estive doente, e eu também a abracei e eu também a apertei, e através da minha roupa e da camisola senti o coração dela batendo rápido, e eu me lembrei das tulipas, me lembrei de mim de joelhos no parque cortando uma tulipa atrás da outra e senti minha mãe me abraçando ainda mais forte, e meu nariz ainda estava impregnado pelo cheiro das tulipas, pelo cheiro verde, intenso, de grama e senti minha mãe estremecendo, e sabia que ela logo começaria a chorar, e eu sabia que também iria chorar, não queria, mas não conseguia me separar dela, só conseguia apertá-la, e eu quis dizer que ela não devia ficar triste, estava tudo bem, mas não consegui dizer nada, não consegui abrir a boca, e então, de repente, alguém tocou a campainha da entrada, tocou firme, a campainha gemeu com força e longamente, uma vez, duas vezes, três vezes, e então senti que minha mãe tinha me largado, o corpo dela de certa forma havia esfriado, e eu também a larguei, e pedi que esperasse pois iria ver quem era.


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