Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 12, 2009

No Teu Deserto, de Miguel Sousa Tavares

De namoro com o Brasil

Figura polêmica em Portugal, onde é um campeão de vendas, o escritor
e jornalista Miguel Sousa Tavares anda pensando em se mudar para o Rio


Jerônimo Teixeira, de Lisboa

Fotos Bel Pedrosa/Cia das Letras/Ann Johansson/ Latinstock

ROMANCE NA AREIA
Miguel Sousa Tavares e o Saara (ao fundo): treze viagens ao deserto, antes da ascensão dos fundamentalistas


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O jornalista e escritor português Miguel Sousa Tavares, 57 anos, já viajou pelo Saara treze vezes. "Deixei de ir à Argélia há oito anos, por causa do fundamentalismo islâmico. Ficou impraticável", diz. Seu mais recente livro, No Teu Deserto (Companhia das Letras; 128 páginas; 30 reais), é o relato romanceado de uma dessas viagens, realizada nos anos 80 ao lado de uma mulher que marcou a vida do protagonista, alter ego do autor. Com descrições vívidas da paisagem e do silêncio do deserto, dos percalços burocráticos em absurdos escritórios do governo argelino para conseguir uma autorização de filmagem no país e das agruras dos motoristas em remotas estradas de areia, o livro distancia-se dos títulos anteriores do autor, os romances históricos Equador e Rio das Flores. Mas, como esses, ganhou o topo das listas de mais vendidos em Portugal. Com uma narrativa mais convencional, se comparada à de António Lobo Antunes ou mesmo à de José Saramago, Sousa Tavares é visto com alguma reticência pela crítica (e o sentimento é mútuo) – mas já contabiliza 1 milhão de exemplares vendidos no país. Sousa Tavares está no Brasil nesta semana para lançar seu novo livro. No domingo 20, participa de um debate na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

Filho da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, jornalista bem conhecido por suas colunas na imprensa escrita e pelos comentários políticos na TVI, Sousa Tavares estreou tardiamente na ficção, com Equador, em 2003. Um certo preconceito por sua exposição na TV explica, em parte, as reservas críticas com que foi recebido. Eis um escritor que deseja se comunicar com o maior público leitor possível – vale dizer, um autor que quer vender muito, e o consegue. "Vejo a escrita como um serviço prestado aos outros. Nem a mim, nem à posteridade ou aos críticos. Por isso vendo os livros, não os dou", explica. Também é um crítico contumaz da política e da cultura portuguesas (leia algumas opiniões suas abaixo). "As pessoas têm dificuldade de me situar politicamente", diz. "Minha matriz é de esquerda. Sempre fui um social-democrata. Mas a estupidez endêmica da esquerda irrita. Os esquerdistas vão muito atrás do politicamente correto, que é conservador e vai contra a liberdade individual." Fumante – ou fumador, como dizem no seu país –, Sousa Tavares foi um inflamado militante contra as leis antitabagistas.

Divorciado, pai de três filhos, Sousa Tavares já teve um caso, no Brasil, com a atriz Maitê Proença. Hoje está namorando a escritora – também brasileira – Tatiana Salem Levy (não o nega, nem confirma: "Não falo nem do meu relacionamento com Deus"). Já antes de conhecer as mulheres do Brasil, Sousa Tavares nutria uma atração particular pelo Rio de Janeiro. "Lisboa é uma cidade um bocado melancólica", diz o escritor, em seu apartamento no alto do bairro da Lapa, de onde se descortina uma vista privilegiada da capital portuguesa. "No Rio, desde a primeira vez em que lá estive, fico feliz logo que se abre a porta do avião." O autor português anda considerando seriamente a possibilidade de se mudar para o Rio – o que motivou um comentário depreciativo de José Saramago: Miguel Sousa Tavares, disse o Nobel de Literatura, pode ir para o Rio ou para Marte, pois não fará falta a Portugal. Sousa Tavares deu-lhe uma réplica certeira: Saramago é que não faria falta, pois, abrigado pelas isenções de uma fundação cultural que leva o seu nome, não paga impostos. (De resto, Saramago mora em Lanzarote, uma ilha espanhola.)

Se vier mesmo a se estabelecer no Brasil, Sousa Tavares já terá encontrado alguns inimigos por aqui. Em uma crônica no jornal O Estado de S. Paulo, o escritor Ignácio de Loyola Brandão reclamou do escritor português, que se teria recusado a cumprimentá-lo em um evento literário em que dividiriam uma mesa de autógrafos. "O homem se acha, deve pensar que é Fernando Pessoa ou Eça de Queiroz", escreveu Loyola Brandão. Eça de Queiroz é um modelo para Sousa Tavares, um escritor de corte mais antiquado, que diz que gostaria de ter vivido no século XIX. No Teu Deserto, porém, é um livro contemporâneo, uma história de amor pontuada pelo assombro diante da natureza inabarcável do Saara. Não será Eça ou Pessoa, claro – mas já basta para autorizar o autor a não se mostrar sempre simpático.

"Saramago não paga impostos"

Portugal, seus dilemas e seu prêmio Nobel de Literatura, na opinião de Miguel Sousa Tavares.

O estado português "O grande problema de Portugal é o excesso de confiança no estado. Fizemos as descobertas com recursos do estado. Tivemos um breve período de liberalismo no século XIX e depois veio o Estado Novo do Salazar. O estado controlava tudo. Então veio a revolução, convenceram-se de que tinha de ser um estado socialista. A mesma coisa: nada se fazia fora do estado. A crença de que o estado é o motor dominante do país continua igual."

Bolsas para escritores "Portugal tem uma bolsa de criação literária. Você diz ao Ministério da Cultura ‘vou escrever um livro’ e ganha 650 euros por mês. No fim, o livro pode não ter editor, ser uma porcaria – ou até não ser escrito. Não conheço nenhum grande livro que tenha saído da bolsa. Não faz sentido pensar que sou um escritor, um artista, e portanto faço parte de uma elite que tem de ser subsidiada."

José Saramago "Saramago já disse que, por ele, tanto faz que eu vá para o Brasil ou para Marte. E eu respondi: tanto faz ao estado português para onde ele vá, pois ele não paga imposto. Tem a Fundação José Saramago, que é isenta e ainda ocupa um prédio histórico cedido pelo estado. Admiro a escrita de Saramago. Mas, como caráter, não o respeito. Estou cansado daquele papel que ele faz de consciência da humanidade, sempre com os ombros curvados."


LIVROS

Trecho de No Teu Deserto,
de Miguel Sousa Tavares

I

(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu conto. E ficamos de contas saldadas.)

Esta história que vou contar passou-se há vinte anos. Passou-se comigo há vinte anos e muitas vezes pensei nela, sem nunca a contar a ninguém, guardando-a para mim, para nós, que a vivemos. Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fina camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes.

A verdade é que, agora que me sento para te escrever, reparo - mas sem nenhum espanto nem estranheza - que não preciso de inventar nada: lembro-me de tudo, exactamente tudo, hora por hora, quase cada olhar nosso, cada gesto, cada sorriso, cada amuo. Sim, às vezes acontece-me esta coisa curiosa, quando olho para trás através dos anos: lembrar-me de todos os detalhes - até daqueles que na altura achei que não teriam nenhuma importância nem signifi- cado - e todavia ser incapaz de situar o tempo exacto em que vivi as coisas. Como se as continuasse para sempre a viver, ou como se nunca as tivesse vivido.

Mas, desta viagem, eu lembro-me exactamente quando foi e que idade tinha: tinha trinta e seis anos, e lembro-me por isso mesmo, porque foi o ano da minha vida em que me senti mais novo. Nem aos vinte e cinco, nem aos vinte e um, nem aos dezoito. Foi aos trinta e seis anos de idade que eu me senti eternamente jovem, quase imortal ou, mais arrepiante ainda, indiferente à própria ideia de morte. E, se eu era jovem, tu, a meus olhos, eras a própria juventude. Tudo em ti, não apenas os teus absurdos vinte e um anos: a própria maneira um pouco estouvada de caminhares, como se ainda não tivesses aprendido bem a andar, a maneira de parares, virar a cabeça e sorrir por cima do ombro, os teus ares de menina pequenina que precisa de ser embalada e que alternavas com vãs tentativas de parecer mulher adulta e sabida, a tua alegria rodeada de crianças no chão de areia de uma aldeia perdida numa pista do deserto, o teu tom sério rodeada de adultos, à noite junto a uma fogueira, fingindo, como os adultos, procurar naquele lençol de estrelas que quase nos tocavam de tão próximas a resposta que lá devia estar sobre o destino do universo e o nosso.

Como tantos outros, procurei sempre encontrar um significado mais grandioso, ou simplesmente mais humano, para aquela linda frase de que morrem jovens os que os deuses amam. Para que não seja apenas uma frase bonita ou para que não queira antes significar a crença terrível de que os deuses só amam os que morrem jovens, assim como bestas desumanas que se alimentam da juventude ceifada. Não sei a resposta: desisti há muito de entender os deuses, de achar um significado humano para a desordem instaurada pelo divino. Sei apenas, no que aos homens diz respeito, que ficam eternamente jovens os que morrem jovens.

Também achei sempre que a beleza não tinha idade. Achei sempre isso, mesmo antes de deixar de ser novo. Um dia (não me lembro ao certo que idade tinha, mas ainda devia ser novo, a avaliar pelo que segue), estava sentado a almoçar sozinho no meu hotel favorito, no meu terraço favorito. Na mesa ao lado, almoçava uma senhora francesa acompanhada por três cavalheiros. Ela estava de frente para mim e eu fiquei perturbado com a sua extraordinária beleza. Fico sempre perturbado com as mulheres demasiado bonitas, nunca sei se são para ser olhadas ou evitadas, contempladas como merecem ou deixadas em paz, porque aquele dom não é culpa que se carregue para devassa alheia. Mas esta mulher parecia uma aparição, uma fada, saída da mata em frente, que era uma mata verdadeiramente encantada. Não estou a brincar, isto foi mesmo assim: eu estava deslumbrado pela beleza dela e ela devia ter uns setenta e muitos anos, talvez mesmo oitenta. Levantei-me no fim do almoço e, quando ia a passar pela mesa dela, não resisti e, em francês - porque a tinha ouvido falar francês -, perguntei-lhe delicadamente se lhe podia dizer uma coisa. Ela fez que sim, com os seus olhos de água, e eu disse-lhe exactamente o que pensava: que ela era, talvez, a mulher mais bonita que eu já tinha visto. Ela sorriu, um sorriso lindo mas triste, como se aquilo lhe causasse mais sofrimento do que alegria, pousou uma mão de dedos esguios sobre a que eu tinha apoiado na mesa, e disse-me:

- Oh, non, jeune homme, la beauté c'est la jeunesse! - Uma frase cruel, sem apelo nem misericórdia, de cuja infalibilidade me tenho tentado desconvencer desde então.

Assim, a ideia de começar finalmente a contar esta história a alguém nasceu-me quando procurava uma fotografia qualquer, numa das gavetas onde guardo (nunca percebi bem para quê) centenas de fotografias e slides de memórias tão desencontradas como eu próprio a bordo de um porta-aviões no meio do mar, os meus filhos na maternidade ou um elefante na savana. Não sei porque guardo tudo isto, pois tenho uma má relação com as imagens mortas dos dias mortos. Ao contrário do normal, raramente arrumo as fotografias, não as guardo em álbuns, não as catalogo, não as legendo, quase nunca as dato. Limito-me a atirá-las ao molho ou em envelopes para dentro das gavetas e às vezes acontece-me até olhar para fotografias de um determinado lugar e não perceber em qual das ocasiões em que lá estive é que foram tiradas. De facto, só abro a gaveta quando vou à procura de uma imagem específica que possa ter uma utilidade concreta e actual, evitando cuidadosamente qualquer tipo de vistoria que possa despertar essa serpente venenosa que hiberna no fundo da gaveta e a que chamamos nostalgia. Dizem que as fotografias não men- tem, mas essa é a maior mentira que já ouvi.

E foi assim, abrindo a gaveta à procura de qualquer outra coisa, que, sem aviso, me escorregou para as mãos uma fotografia tua tirada durante aqueles quatro dias. Fiquei a olhar-te longamente, longa, longa, longamente. E longamente me fui dando conta de que tudo aquilo acontecera mesmo: eu não o sonhara, durante vinte anos. Nisso, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem - esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno, que dois amantes felizes e abraçados numa fotografia ficaram para sempre felizes e abraçados. É por isso que não gosto de olhar para fotografias antigas: se alguma coisa elas reflectem, não é a felicidade, mas sim a traição - quando mais não seja, a traição do tempo, a traição daquele mesmo instante em que ali ficámos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade se pudesse suspender carregando no botão "pausa" no filme da vida.

Ali estavas tu, então, tão nova que parecias irreal, tão feliz que era quase impossível de imaginar. Ali estavas tu, exactamente como te tinha conhecido. E o mais extraordinário é que, olhando-te, dei-me conta de que não tinhas mudado nada, nestes vinte anos: como nunca mais te vi, ficaste assim para sempre, com aquela idade, com aquela felicidade, eterna, desde o instante em que te apontei a minha

Nikon e tu ficaste exposta, sem defesa, sem segredos, sem dissimulação alguma.

Foi ao terceiro dia da nossa viagem, na estrada entre Oran e Argel, Novembro de 1987.


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