Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 07, 2009

Everardo Maciel A politização do Fisco


Um traço evidente de atraso político de um país é o preenchimento indevido de cargos técnicos na administração pública por políticos ou por pessoas por eles indicadas.

No Brasil, as raízes dessa deformação se encontram na anarquia político-partidária. Frequentemente, a eleição de governantes não guarda correspondência com os eleitos para as casas legislativas, o que obriga a construção de esdrúxulas alianças, sob o farisaico manto da governabilidade.

A viabilidade dessas alianças reclama a prática do fisiologismo, que se faz acompanhar do aparelhamento e das negociatas associadas à aprovação e liberação de emendas parlamentares, candidamente qualificadas como transferências voluntárias.

As primeiras vítimas dessas malsinadas práticas são os princípios da moralidade e da eficiência, que deveriam reger a administração pública, nos termos do art. 37 da Constituição.

Não se entenda que blindar a administração pública contra as mazelas da política seja instituir territórios autônomos à observância das diretrizes governamentais, legitimadas pela vontade popular, mas tão somente estabelecer limites entre objetivos políticos e meios técnicos.

A política brasileira, como a de inúmeros outros países, é demasiado condescendente com práticas iníquas, tais como a injúria, a manipulação fraudulenta de informações, a coalizão entre forças programaticamente antagônicas, a competição abusiva fundada na supremacia absoluta do interesse individual ou grupal sobre o público.

A politização da administração pública, tida como a indevida ingerência em áreas técnicas, produz uma ampla disseminação dos indesejados vícios da política. Toda questão técnica passa a ser vista como instrumento vinculado à ação partidária.

No território da política, as ações invariavelmente produzem reações. Muitas delas tão nocivas quanto as que lhe deram causa.

O corporativismo, por exemplo, é uma reação perniciosa à ingerência política. Aqui, não se exploram suas origens vinculadas ao fascismo italiano. Observa-se apenas que ele traduz a subordinação do interesse público ao de um grupo.

Nada tão lamentável como a eleição de autoridades públicas pela própria corporação. Ressalvadas situações especialíssimas, é quase inevitável que esse processo seja contaminado pelas deformações da política convencional.

Não seria estranho, além disso, se particulares passassem a se interessar pelo assunto, com todas as implicações daí decorrentes. Percebe-se, a propósito, um suspeitoso fascínio que os cargos aduaneiros exercem sobre políticos e empresários.

Em julho de 2000, assisti a uma conferência proferida, em Washington, por Larry Summers, hoje chefe da Assessoria Econômica do Presidente Obama e à época Secretário do Tesouro, sobre a reestruturação do IRS (Internal Revenue Service).

O conferencista assinalou que a iniciativa dava curso a reformas realizadas na década de cinquenta, quando foi eliminada qualquer forma de ingerência política no órgão responsável pela administração tributária federal nos Estados Unidos.

Fiquei a refletir sobre o Brasil. Sabia que, desde o governo do Presidente Fernando Henrique, a Receita Federal estava imune à ingerência política, tanto quanto há muito tempo já se encontravam inúmeras administrações tributárias estaduais e municipais.

Sabia, contudo, que essa realidade estava condicionada à prevalência da sempre decantada e, também, volúvel vontade política.

O Presidente Lula, prudentemente, manteve essa orientação até que, por insondáveis razões, resolveu ceder à tentação política, afastando o competente Secretário Jorge Rachid.

Essa saída deu lugar a mais ampla substituição de quadros dirigentes da Receita Federal de que se tem notícia. Técnicos de reconhecida competência e probidade foram afastados, às vezes de forma humilhante, pela simples razão de terem contribuído em administrações passadas.

Foram sucedidos por profissionais, cuja lisura não se põe em dúvida, conquanto tenham sido escolhidos pela mera condição de pertencerem a uma facção sindical minoritária.

A política pousou na Receita.

A imprensa notificou à profusão fatos lamentáveis, como a insistência em identificar razões pífias para o afastamento da equipe que sucedeu à administração de Rachid: ora, era a prioridade conferida à fiscalização dos grandes contribuintes, nem que para isso tivessem que ocultar o passado ou manipular estatísticas; ora, a pressão exercida por contribuintes insatisfeitos, ainda que não se nomeasse quem eram eles e de que forma agiriam, parecendo reproduzir o episódio das forças ocultas, alegado por Jânio Quadros ao renunciar.

Afora isso, estapafurdiamente foram concedidas 30 mil licenças a funcionários, para participação em eventos sindicais.

Em boa hora, o governo parece estar trazendo a Receita Federal de volta aos trilhos. Não vai ser fácil, nem rápido. O tempo necessário para reconstruir costuma ser maior que o despendido para destruir.

De qualquer forma, deve-se ficar atento, pois como lembrava Nelson Rodrigues: “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.

Everardo Maciel é ex-Secretário da Receita Federal

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