Bons de briga e de audiência
Homens fortões e de sunga que gostam de atracar-se num ringue.
Não, não entenda mal: é o vale-tudo, cujos campeonatos valem,
agora, milhões de dólares
Kalleo Coura
Francis Specker/Ladov |
BRASIL X BRASIL |
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• Quadro: Vale Quase Tudo |
Quando o lutador brasileiro de jiu-jítsu Rorion Gracie levou o vale-tudo para a televisão americana, no começo da década de 90, a proposta do esporte, na singela definição de seu introdutor, era "colocar dois homens no ringue para ver quem saía de lá andando". Naquele tempo, valia, literalmente, tudo, incluindo chutar a cabeça do oponente caído no chão como se fosse uma bola de futebol – golpe que ficou conhecido como "tiro de meta". Da luta propriamente dita à cenografia dos ginásios, tudo era feito para assustar: Rorion e seu grupo chegaram a planejar um ringue ao redor do qual nadariam jacarés e tubarões ("para mostrar a impossibilidade de fugir do combate"). Mais de quinze anos depois, o "tiro de meta" e outros golpes igualmente escabrosos foram banidos do esporte e a ideia de matiz existencialista dos jacarés foi, felizmente, esquecida. Do esporte original, praticamente só restou o formato da arena – um octógono cercado de grades de 1,80 metro de altura. O vale-tudo – que chegou a ser banido em 45 estados americanos e foi chamado de "rinha de galos humana" pelo senador republicano John McCain, candidato derrotado à Presidência dos Estados Unidos – agora é mais comportado. Rebatizado de MMA, ou mixed martial arts, tem mais regras e está perto de se tornar mais popular do que o boxe.
No ano passado, só a transmissão do principal campeonato da modalidade, o Ultimate Fighting Championship (UFC), nos Estados Unidos, movimentou 300 milhões de dólares no mercado americano de pay-per-view – 45 milhões de dólares a mais do que o recorde obtido pelo boxe. No Brasil, o número de assinantes do canal Combate, que detém os direitos de exibição da competição, cresceu 86% nos sete primeiros meses deste ano. Para Dana White, presidente do UFC, a popularidade da luta se deve basicamente a dois motivos: a ausência – nua e crua – de complexidade ("No vale-tudo, todo mundo entende o que está acontecendo", diz White) e o fato de pouca gente resistir à curiosidade de olhar uma briga. Mesmo com a série de regras introduzidas a partir dos anos 2000, nada se parece mais com uma briga – daquelas autênticas, de rua – do que um embate no vale-tudo. Pode não haver tanto sangue como antigamente, mas sopapos fortes há em profusão: o número de lesões sofridas pelos atletas é quase duas vezes o do boxe (veja o quadro abaixo).
O Brasil tem motivos extras para gostar do esporte: dois dos cinco atuais campeões mundiais do UFC são brasileiros – o peso médio Anderson Silva, de 34 anos, e o meio-pesado Lyoto Machida, de 31. No mês passado, pela primeira vez, também uma brasileira conquistou o título de campeã de vale-tudo em uma competição importante. Cristiane "Cyborg" Santos, de 24 anos, fez a americana Gina Carano pedir água na final do Strikeforce, o segundo campeonato mais popular nos Estados Unidos (veja o quadro abaixo). Se, no Brasil, pouca gente reconhece esses campeões nas ruas, nos Estados Unidos e no Japão eles desfrutam fama equivalente à do mais famoso jogador de futebol. Há duas semanas, quando Anderson Silva foi acompanhar o amigo e ex-campeão Minotauro na pesagem para uma luta num ginásio de Portland, no estado americano de Oregon, centenas de pessoas, ao saber de sua presença, aglomeraram-se diante do local. Em fila, esperaram até duas horas e meia para conseguir um autógrafo dele. A popularidade da luta nos Estados Unidos é tamanha que um par de luvas usado por um lutador numa disputa de título chega a ser vendido por 15 000 dólares. As bolsas pagas pelo esporte estão longe de alcançar as do boxe, mas as premiações para os atletas mais populares já atingem 500 000 dólares por luta.
Assim, acenando com promessa de fama e fortuna, o vale-tudo começa a despertar a atenção de adolescentes brasileiros. A escola de vale-tudo Chute Boxe, em Curitiba, por exemplo, recebe anualmente em torno de 100 novos alunos de muay thai, jiu-jítsu e "artes marciais mistas" (como, pouco a pouco, o vale-tudo começa a ser chamado no Brasil). A academia já formou oito campeões de vale-tudo, em campeonatos diversos. "Entre os novos alunos, um terço nos procura com a intenção de se tornar profissional e disputar competições internacionais", diz o dono da academia, Rudimar Fedrigo. Pisar numa arena americana é o sonho de Thiago da Silva, de 19 anos. "Quero ser como o Wanderlei Silva, que foi campeão mundial", afirma Thiago, filho de um entregador dos Correios e de uma dona de casa. Também no Rio de Janeiro, a maior parte dos atletas que integram a equipe de vale-tudo capitaneada pelo lutador de jiu-jítsu Cézar Guimarães vem de famílias de baixa renda. "Para o garoto da periferia, o vale-tudo é como o futebol: uma alternativa para conquistar uma vida melhor", diz Guimarães.
A matriz do vale-tudo é o jiu-jítsu. Diz-se que, nos anos 20, o lutador Carlos Gracie – tio de Rorion Gracie e um dos fundadores do clã de brigões –, decidido a provar a supremacia dessa arte marcial sobre todas as lutas, colocou um anúncio num jornal do Rio com os seguintes dizeres: "Se você quer ter um braço ou uma costela quebrada, contate Carlos Gracie". A frase foi bem compreendida pelo público-alvo, com o perdão do trocadilho: não tardou para que boxeadores, capoeiristas e valentões de todos os tipos procurassem os Gracie para brigar, primeiro em locais fechados, depois em espetáculos públicos que tiveram seu auge nas décadas de 50 e 60. Até os anos 90, o vale-tudo era uma disputa quase sempre vencida por praticantes de jiu-jítsu. Hoje, dificilmente um lutador profissional vem de uma única escola. Anderson Silva, com dez vitórias consecutivas no UFC, começou fazendo tae kwon do, mas aprendeu também boxe tailandês, judô e jiu-jítsu. Lyoto Machida, com quinze vitórias em quinze lutas, é – como faz questão de dizer seu pai, Yoshizo Machida – um carateca antes de tudo. Mas é também especialista em jiu-jítsu e sumô. Nos Estados Unidos, grande parte dos lutadores vem da luta livre, como é o caso do atual campeão dos pesos pesados, Brock Lesnar, com 1,91 metro, 120 quilos e notório mau comportamento. Na última defesa do cinturão, ele derrotou o desafiante Frank Mir, também americano. Enquanto Mir, ainda com sangue no rosto, tentava se levantar na arena, Lesnar rosnou: "Agora fale toda a m... que você quiser". Vaiado pela torcida, levantou as mãos mostrando o dedo do meio e, em seguida, declarou na entrevista coletiva que iria para casa "beber Coors Light, porque a Bud Light (patrocinadora do UFC) não me paga nada".
O invicto Lyoto defenderá em outubro o título contra outro brasileiro, o curitibano Mauricio Shogun, no combate que o UFC fará em Los Angeles. Dana White, o presidente da organização, já anunciou que quer trazer o espetáculo para o Brasil. Nada mais natural. Afinal de contas, foi aqui que o vale-tudo surgiu antes de ganhar fama – e também alguns modos.
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