FOLHA DE S. PAULO
Para torná-la realidade é preciso merecê-la, via consenso e equidade, que demandam muito esforço
A JULGAR pela extravagante retórica de Gordon Brown após a reunião do G20, o mesmo "ghost-writer" vem escrevendo ao longo de 20 anos todos os discursos que falam de uma nova ordem internacional. Em 1988, Gorbatchov dizia na ONU que o progresso só seria possível mediante a busca do consenso de toda a humanidade em "movimento rumo a uma nova ordem". Dois anos depois, Bush pai declarava de modo mais exorbitante que uma nova parceria de nações tinha começado e nos encontrávamos em um momento único e extraordinário. Desses tempos conturbados, "uma nova ordem mundial pode emergir na qual as nações do mundo, no leste e no oeste, no norte e no sul, poderão prosperar e viver em harmonia".
Ambos se referiam, é claro, ao fim da Guerra Fria e do permanente risco de destruição nuclear devido à hostilidade entre leste e oeste. Ainda não se previa que, pouco depois, o colapso da própria URSS e do "comunismo real" tornaria a mudança mais avassaladora.
Abria-se janela que não tinha existido desde o final da Segunda Guerra: a oportunidade de reconstruir a ordem internacional em bases de maior equilíbrio. Desperdiçou-se o momento propício; se foi por falta de imaginação ou de tempo (Bush não foi reeleito), é matéria de debate. Tenho para mim que a razão é outra. Seduzido pela ilusão do poder unipolar, o governo americano quis que ele se tornasse perpétuo, confundindo-o com a nova ordem. Afinal, a primeira Guerra do Golfo não havia demonstrado que era possível resolver os desafios mediante a afirmação da vontade dos EUA?
No episódio, a "coalizão dos decididos", liderada por Washington, tomou o lugar do consenso. A fórmula foi repetida por Clinton, com menos seguidores, na Bósnia e no Kossovo, e de forma mais unilateral na invasão do Iraque por Bush filho. A nova ordem se parecia cada vez mais com a velha desordem estabelecida. O discurso de Gorbatchov indicava qual era o primeiro elemento da nova ordem: o consenso de todos. O segundo é a equidade, isto é, certa igualdade e equilíbrio na justiça.
Sem isso, pode-se ter situações de fato, nunca verdadeira ordem. Aplicar o conceito à reunião de Londres é um despropósito. Substituir o G1, G2 ou G8 pelo G20 é alguma coisa. Pouco, porém, para fazer jus à legitimidade, que só pode vir do G192, número de membros da ONU. Será, por exemplo, que os 850 milhões de africanos negros se dão por representados apenas pela África do Sul?
Equidade foi algo só mencionado pro forma no comunicado. Tratar do tema a sério exigiria esforço muito maior. Os aspectos políticos -reforma a fundo do Conselho de Segurança, solução justa do conflito Israel-palestinos, desarmamento para valer, acordo sobre clima- dependeriam de consenso o mais amplo possível.
Chamar esse modesto começo de nova ordem é enganador. Obama, aliás, evitou o exagero da campanha e falou com sobriedade. A contundente realidade já começou a confirmar o salmo 32: o Senhor desfaz os projetos das nações. A bomba da Coreia do Norte, o silêncio do Irã, a guinada à direita de Israel e o fantasma de um novo Vietnã pairando sobre o Afeganistão-Paquistão são lembretes de como será árduo construir uma nova ordem. Uma nova ordem é só uma palavra, diria Fernando Pessoa. Para torná-la realidade é preciso merecê-la.
Entrevista:O Estado inteligente
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