A nova psiquiatria é "democrática". Alguém já ouviu falar em urologia democrática? |
MINHA CRÔNICA "Uma lei errada", publicada aqui, dia 12 deste mês, deu oportunidade a que muitos leitores, ora concordando, ora discordando, manifestassem sua opinião sobre o tema da internação psiquiátrica. Quem leu essas cartas percebeu certamente que a maioria dos que comigo concordam são pessoas que têm experimentado na carne as consequências de uma lei que, embora bem intencionada, em vez de ajudá-las, agrava-lhes o sofrimento.
Dentre as cartas dos leitores, algumas assinalaram a qualidade do atendimento médico nos serviços comunitários de saúde mental, fato que registro com prazer. Minha crítica à lei 10.216/2001, que estabeleceu a nova política psiquiátrica, limitou-se a seu objetivo fundamental, que resulta em condenar e inviabilizar a internação dos pacientes.
Tampouco acredito que a internação por si só resolva os problemas, mas é inegável que, em casos de surto psicótico agudo, essa providência é imprescindível. Ninguém, em sã consciência, acredita que, nesse estado, o paciente possa ser atendido no hospital-dia. Não é difícil prever o que ocorre, em tais circunstâncias, quando a família do paciente não consegue interná-lo. Manter em casa uma pessoa em estado delirante é praticamente impossível. Por isso, as famílias que têm recursos recorrem às caríssimas clínicas particulares. E as que não têm?
Não obstante, a nova psiquiatria intitula-se "psiquiatria democrática". Por acaso, alguém ouviu falar em cardiologia democrática ou urologia democrática? Por que, então, essa adjetivação ideológica dada à psiquiatria? É que, com isso, se pretende afirmar que o procedimento médico que admite internação é antidemocrático e, para acentuar isso, os defensores dessa tese dizem integrar um tal "movimento antimanicomial", ou seja, contra o manicômio, que não existe há muitas décadas já. Mas é preciso satanizar o hospital psiquiátrico -que existe- para mais facilmente extingui-lo.
Cabe, no entanto, indagar por que esse horror à hospitalização do doente mental, quando isso sucede naturalmente com qualquer outro tipo de enfermo, se se faz necessário. A quem ocorreria chamar de antidemocrática a internação de um paciente que contraiu malária ou pneumonia? Se a doença, porém, for esquizofrenia, a coisa muda de figura: para a "psiquiatria democrática", interná-lo é atentar contra a sua liberdade. É que, na verdade, para os antimanicomiais, a esquizofrenia não é uma doença, como o é, por exemplo, a tuberculose ou a diabetes. Para eles, trata-se apenas de um "transtorno" psicológico, cujas causas estão fora do indivíduo: estão na família e na sociedade. Família e sociedade que, para ocultar sua culpa, o internam.
Tanto é assim que a referida lei estabelece o prazo de 72 horas para que a internação seja comunicada ao Ministério Público pela direção do hospital, bem como sua alta. É como se o paciente tivesse sido detido pela polícia. Alguém pensaria em adotar tais providências, ao internar uma pessoa num hospital por outra qualquer doença? Em outro artigo, essa mesma lei exige que "a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada, quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes". Sim, porque os familiares do doente mental, como afirmou o autor dessa lei, só pensam em se livrar dele.
Enfim, a tese é essa: o que se chama de doença mental não passa de "transtornos", que serão superados na medida em que ao paciente seja dado conviver com pessoas que o tratem como igual e respeitem sua individualidade. A lei não fala em doença mental. Superados os traumas do desajuste que lhe foi imposto pela família e pela sociedade, será reintegrado na vida normal. Mas em qual família e em qual sociedade? Aí está o problema, já que o tratamento teria que se estender à família e à sociedade. Como se vê, por teimarem em ignorar as verdadeiras causas da doença mental, os antimanicomiais defrontam-se com uma tarefa descomunal: criar a sociedade sem traumas!
Não tenho nada contra, mas sou obrigado a admitir que demorará muito e talvez nem seja possível. Enquanto isso, o que faremos com os doentes em estado delirante que, se internados, seriam tratados e protegidos? Hoje, as clínicas psiquiátricas particulares são lugares tranquilos, onde o paciente, ao mesmo tempo que se trata, dispõe de vários tipos de lazer e ocupação terapêutica. Certo seria que o Estado brasileiro oferecesse o mesmo aos doentes sem recursos e sem atendimento hospitalar.