Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 25, 2009

Pobre George, de Paula Fox

Livros
Solidão a dois

Por que pessoas que se odeiam permanecem
juntas? Essa é a questão que a americana Paula
Fox investiga no belo romance Pobre George


Cristovão Tezza

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Trecho do livro

Por que pessoas que se odeiam permanecem juntas? Essa questão perene ganha um contorno literário preciso em Pobre George (tradução de Maria Alice Máximo; Record; 272 páginas; 30 reais), romance da americana Paula Fox, ambientado na Nova York dos anos 60. George e Emma Mecklin, ele professor, ela dona de casa, são um casal sem filhos que vive tediosamente num bairro afastado. As visitas eventuais, e tensas, da irmã divorciada de George com seu filho mimado e uma ou outra festa regada a álcool de seus vizinhos bisbilhoteiros concentram o máximo de emoção da vida de George. A relação com a mulher é pontuada de agressões contidas, sob a sombra de um afeto apenas pressentido, que nunca está em lugar algum. "Quero uma coisa que tenha significado para mim", ele diz num momento, sintetizando o seu vazio.

O momento de virada é a invasão de sua casa por um jovem delinquente, Ernest, uma presença ambígua que circula pelo bairro. Como um bom samaritano, George resolve ajudá-lo a se reintegrar à sociedade, oferecendo-lhe livros e aulas particulares. Ernest reage com desprezo, ainda que mantendo um fio de interesse, ao qual George se apega, tentando encontrar um papel social para si mesmo, um lugar inseguro entre o pai compreensivo e o mestre severo. A presença do intruso desestabiliza ainda mais a relação de George com a mulher, que não suporta o rapaz. A tensão do casal chega ao limite quando Ernest furta o rádio da casa – e poucos dias depois surge com o rosto inchado, vítima de um espancamento. George lhe oferece o quarto de hóspedes, para que se recupere. A sugestão de vizinhos e da própria Emma de que haja algo erótico naquele interesse de George apressa o desfecho de uma tragédia anunciada que, também ela, acaba por se revelar patética e sem sentido.

UIF Andersen/Getty Images
Reputação em alta
Paula Fox: a crítica agora a considera um dos grandes nomes da ficção americana


O pano de fundo do romance, publicado em 1967, são os Estados Unidos mergulhados na Guerra do Vietnã, vivendo uma transformação que incluía a implosão moral da era de ouro da classe média americana e o agressivo avanço da luta pela igualdade racial e direitos sociais. A figura tateante de George sintetiza o cidadão comum esmagado por forças que não consegue compreender. O livro se compõe de capítulos longos nos quais se sente a influência do grande teatro americano. Diálogos secos, que mais sugerem do que dizem, costurados por um narrador atento mas sempre duro, criam uma espécie de consciência puritana do mundo, que, num tempo despojado de metafísica, parece incapaz de achar um espaço em que a convivência seja possível.

Paula Fox sabe do que fala ao tocar na solidão humana: entregue para adoção ao nascer, acabou ela mesma, adolescente grávida, repassando sua filha para adoção (que se tornará, pelas voltas e mistérios da vida, a mãe da célebre roqueira Courtney Love). Hoje com 86 anos, Paula Fox é reverenciada pela qualidade de sua vasta literatura infantil. Mas os seis livros para adultos que escreveu entre 1967 e 1990 – Pobre George foi o primeiro deles – estão sendo reavaliados pela crítica como um dos momentos altos da prosa americana do século XX.

Diferenças entre irmãos

"Quando ela se curvou para entregar o copo ao menino, o grande nó de cabelo castanho preso na nuca de Lila se desfez. Sua pele era clara e pálida. Os traços do rosto de George eram um pouco abrutalhados, mas os dela eram finos e delicados. Mesmo assim a irmã lhe parecia pouco atraente. Ela encheu de água uma panelinha e colocou-a no queimador do fogão. Ele subitamente a achou muito desagradável. A saia dela tinha uma parte rasgada e ela se curvava sobre o fogão como uma velha."

Trecho de Pobre George, de Paula Fox


LIVROS

Trecho de Pobre George, de Paula Fox

Capítulo Um

A quem interessa ouvir isso?

A ninguém, respondeu George Mecklin a si mesmo. Ele havia colocado sua cadeira em um lugar que lhe permitia ver, por cima das cabeças dos outros professores, uma janela que, por breves instantes, emoldurava os transeuntes da Ninetyeighth Street. A reunião começara às 3h. Agora já passava das 4h. Alguém recolheu a ponta de uma caneta esferográfica, emitindo um estalido seco. Alguém acendeu um cigarro. Alguém tossiu. Haviam terminado o assunto da conferência de início do ano letivo. O diretor, Harrison Ballot, debruçou-se sobre suas anotações. Seus braços curtos e suas mãos gorduchas apoiavam-se, imóveis, a cada lado dos papéis sobre a mesa à sua frente.

Acima dos escuros prédios que se alinhavam na calçada oposta à escola, George podia ver uma nesga de céu cor de sebo. Os prédios pareciam suspensos em um meio viscoso e cinzento. Estaria chovendo?

- Se fosse apenas no ginásio - começou Ballot, olhando por cima das cabeças do seu corpo docente -, mas ocorre também na escola elementar. A quinta série está absolutamente infestada disso.

- Disso o quê? - perguntou Harvey Walling, um professor de matemática.

O crânio pelado de Ballot enrugou-se como se algo dentro dele estivesse se movendo.

- O quê? De que você acha que estou falando? De consulta indevida. É disso que estou falando.

- Cola - disse uma mulher de cabelos curtos do departamento de inglês.

- Há gradações - disse Ballot conciliador.

- Blablabla - retrucou a mulher. Ela parecia abor recida.

George voltou a olhar pela janela. Dois homens escuros, mirrados e de pescoços finos, cujas cabeças pareciam efígies apoiadas em pedaços de pau, passaram apressadamente. Porto-riquenhos? Em seguida uma enorme mulher descabelada surgiu e logo desapareceu, parecendo aflita.

A sala estava abafada. George se levantou, foi até a janela e abriu uma fresta. A mulher de cabelos ruivos e volumosos sacudiu um menino pequeno cuja cabeça estava envolvida por um capacete transparente semelhante a uma bolha. Nele estava escrito "Explorador Espacial". De dentro dele, o menino lançava um olhar indiferente como o de um peixe. Um negro cego, com sua bengala branca a explorar a calçada à frente, hesitou e parou. A mulher lançou um olhar furioso em sua direção e em seguida se pôs a bater no capacete com os nós dos dedos. O cego deu um passo à frente e seu pé aterrissou em uma tampa de lata de lixo. Confuso, ele parou e ficou pensativo. No mesmo instante, o menino arrancou o capacete e o atirou na rua. A mulher aplicou um tapa na cara magra e azulada da criança e correu atrás do capacete, enquanto o menino chorava com uma das mãos no rosto e a outra apertada contra o lado da coxa. O negro pôs-se a caminhar novamente. Umas gotas esparsas de chuva começavam a escorrer pelo vidro da janela, como se o elemento no qual a cidade estivera suspensa estivesse derretendo. George retornou à sua cadeira.

- Precisamos pôr fim a isso - dizia Ballot.

- Mas como? Diga como! - exclamou Lawrence Rubin, que ensinava história nas últimas séries, complementando sua intervenção com um tapa na mesa. Ninguém gostava dele e ninguém respondeu sua pergunta. Walling, sentado em frente a George, cofiava as pontas de seus bigodes negros. Usava um colete de camurça vermelha. George se perguntou se seria para atrair mulheres. Tinha ouvido dizer que Walling pintava quadros.

Já quase a cochilar, George percebeu que uma comissão estava sendo organizada: haveria uma assembléia especial; membros do conselho de estudantes precisariam ser ouvidos e orientados; Ballot escreveria um editorial para o jornal da escola. Rubin afundou-se na cadeira.

- Toda a nação está corrompida - disse ele, dirigindose ao teto. Walling corrigia abertamente trabalhos de matemática que estavam sobre a mesa. George esforçou-se por se interessar pelo que estava sendo dito. Em seguida olhou para o próprio peito para verificar que gravata estava usando.

Havia outros assuntos na pauta: a escolha da peça a ser encenada pelos alunos da última série; um relatório sobre as máquinas automáticas de vender maçãs na sala de recrea ção (estavam quebradas); uma descrição do laboratório de línguas recém-instalado, antiga aspiração do diretor do departamento de línguas. O tempo arrastou lentamente os ponteiros do relógio na parede da sala. E aí acabou.

Com metade do paletó ainda por vestir, George dirigiuse rapidamente para a porta. Ballot lá estava, curvando-se como um diácono, com um leve sorriso no rosto de gato velho, enquanto os professores saíam, um a um. Com um dedo gordo, tocou o braço de George.

- Como vai o campo?

- Bem - respondeu George.

Rubin forçou a passagem entre eles contraindo os lábios grossos antes de dizer qualquer coisa, e George escapou para o corredor.

Desceu a Columbus Avenue até a Eighty-ninth Street, onde sua irmã Lila morava em um apartamento de dois cômodos no segundo andar de um prédio antigo. Por trás dos grande edifícios residenciais que davam para o Central Park, a rua tinha um ar de decadência e tristeza. A chuva começou a cair forte nas fachadas de tijolos escurecidos, nas latas de lixo destampadas, nos depósitos de cinza, dando-lhes uma tonalidade rosada, no calçamento cinzento onde excrementos de cães se liquefaziam lentamente e escorriam para os ralos.

A cada lado da entrada do prédio de Lila, duas jardineiras de cimento exibiam pregos enferrujados enterrados a intervalos regulares de duas polegadas. Quando George tocou a campainha de baixo, um gato balofo que estava sentado na quina de uma das jardineiras esticou subitamente a pata e arranhou-se em um prego. George e o gato olharam-se com curiosidade e a porta se abriu.

Lila Gillis abriu a porta de seu apartamento depois de olhar cuidadosamente pelo visor para o corredor escuro. O lenço que tinha na cabeça escorregou para os ombros.

- Você! Que surpresa! Entre. Já sei que só dispõe de cinco minutos, não? Claude, me larga! - Ela tentou se livrar do filho de 7 anos que se agarrou à sua cintura. Mal ela conseguiu soltar os dedos do menino, ele se agarrou à sua saia. A cabeça de Claude estava coberta com um saco de papel. Ele não emitia som algum em sua luta para agarrar-se a ela.

- Eu disponho de mais do que cinco minutos - disse George ao entrar na sala.

- Acabamos de chegar do mercado. - Ela conseguiu soltar-se do menino.

- "Claude, Claude..." - chamou George. O menino sacudiu a cabeça encapuzada com papel. - Você gostaria de ganhar um capacete espacial de plástico?

- É melhor você comprar um para mim - disse Lila. - Como sempre, tudo aqui está por um fio.

George acendeu o abajur de haste flexível que se agarrava à estante de livros com sua garra enferrujada. A luz iluminou o frontispício de mármore da lareira desativada. O caminhão vermelho do menino estava estacionado ali. O resto da sala estava ensombreado, e no ar um cheiro de poeira revelava que as janelas estavam fechadas havia muito tempo.

- Meu trabalho acaba dentro de uma semana. Disseram- me isso hoje - disse Lila. Ele se voltou para ela. - Não me olhe assim - disse ela com um sorriso. - Não fui despedida. O trabalho simplesmente acabou.

- Vai ser melhor para você.

- Você sempre me diz isso sobre uma coisa ou outra, não é mesmo?

- Você precisa de um emprego de verdade.

- Aceita um chá? Esta sala está insuportável, não?

- Você está sempre envolvida com gente que cuida de doidos.

- Doidos? Saúde mental está na ordem do dia. Eu escrevi lindas cartas para loucos cheios de dinheiro pedindo doações para loucos pobres. Mas campanhas acabam. Os generais retornam a seus escritórios empoeirados.


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