O GLOBO
Meu primeiro emprego foi em redação de jornal e, no dia a dia da imprensa, já fui desde repórter (esforçado, mas ruim) a chefe de redação (não tão esforçado, nem tão bom). Bom mesmo, ou pelo menos mediano, acho que só como copidesque, no legendário tempo dos copidesques e seus desafios himalaicos, tais como botar em meia lauda o essencial de uma conferência de duas horas — não tenho muita saudade.
E editorialista, creio que razoável.
Mas o pouco brilho de minha carreira não impediu que tenha vivido praticamente todo tipo de situação por que pode passar a imprensa em geral e um seu órgão em particular. Ou seja, assim ou assado, manjo jornal, o mundo jornalístico e seus valores, conheço suas boas qualidades e seus defeitos e acompanho a imprensa brasileira há mais de meio século.
Devia estar acostumado, portanto, a essa perpétua conversa de que o culpado pelo que de mau acontece é a imprensa, um absurdo tão patente que já deveria ter caído em desuso.
Mas não caiu. Pelo contrário, rebrota como as cabeças da hidra de Lerna e chego a pensar numa das muitas ironias que todo o tempo nos exibem seu sorriso sarcástico: a imprensa nunca vai deixar de ser essencial aos governantes, notadamente os incompetentes e corruptos, porque sem ela não haveria em quem pôr a culpa dos desmandos, malfeitorias, burrices e simples e puros crimes por eles cometidos e pela imprensa denunciados.
Responsabilizar a imprensa, por si só, já mostra desdém pela inteligência de quem ouve ou lê. “Explicação” tão cediça, mentirosa e evasiva já bem que podia ter sido substituída por outra um tantinho mais elaborada. Mas eles capricham.
Vejam só o Gabeira, que é também jornalista, mas deve ter tido um pequeno branco na semana passada.
Segundo li, ele disse que a imprensa estava agora atacando a Câmara de Deputados porque esta não é grande anunciante. Ou seja, parece ter deixado implícito que, se a Câmara de Deputados fosse grande anunciante, este jornal, por exemplo, não publicaria esta e outras colunas. Tudo bem, a tal acha ele que se resume a filosofia editorial de um jornal sério, tudo bem, cada um pensa o que quer, diz o que quer e esquece o que quer. E cospe no prato, quando manda a feia necessidade.
Mas o que me surpreendeu mesmo, nessa do Gabeira, foi ele ter contado uma história, na qual revela que acha que nós é muitíssimo mais burro do que nós é. Disse que, quando veio à frente e revelou que também era agente de viagens, como tantos de seus colegas, arranhou sua imagem política espontaneamente.
Quem engoliu essa deve filiar-se de pronto ao Alimárias Anônimas mais próximo de sua casa. Claro que o verdadeiro arranhão aconteceria se ele não se antecipasse à revelação, que viria mais cedo ou mais tarde. Aí é que seria chato mesmo e ele, astutamente, se antecipou para eludir o constrangimento, mas acha que pode tapear a gente com outra conversa. Quer dizer, esse negócio de ter certeza de que todo mundo aqui é cretino ou fronteiriço deve ser um vírus que dá lá no Congresso e que acabou pegando o Gabeira também.
Essa patologia acabrunhante já se tinha manifestado antes em declarações do presidente da Câmara, tais como a de que meteram a mão nas passagens até para viagens galantes porque “não havia regras claras”. Seria de esperar que, não havendo regras claras para a utilização de uma vantagem, o homem público escrupuloso se afastasse dessa vantagem. Mas não, aqui isso justifica o uso e o abuso. Talvez, para que haja regras bem claras onde se diz que circulam tantos ladrões, seja melhor colar etiquetas em tudo: “Não pode levar este microfone para dar à banda de rock de seu filho”; “não pode pegar as cadeiras para mobiliar o sítio”; “os talheres são da casa”; “o papel higiênico é para uso exclusivo no local”; “tire a mão daí”, etc. etc.
Disse também o presidente da Câmara que nem todos os deputados são responsáveis por irregularidades ou falcatruas, e não se devem misturar alhos com bugalhos. Ninguém discorda, não se devem misturar alhos com bugalhos, mas quando os próprios alhos se misturam mais com os bugalhos do que clara e gema num ovo mexido, como é que se faz? Por que os alhos, a quem compete essa função e não aos governados, não se livram dos bugalhos, por que os protegem e coonestam? A mistura atingiu o ponto de não-retorno? E chega também desse papo besta, que tem enchido o país de ensaístas políticos que nunca leram o bêaacute;-bá de teoria política nenhuma, com essa conversa de que é irresponsável falar mal do Congresso, porque sem Congresso não pode haver democracia.
Verdade meio discutível (sem imprensa livre, inclusive internet, é que hoje não acredito em democracia), mas vamos dar de barato, para não bater boca com quem está por fora até dos fundamentos e nem distingue Estado de Governo, como já peguei muitos. Tudo bem, mas Congresso de merda também não é indício nenhum de existência de democracia, pois perguntem se a Coreia do Norte não tem lá o seu Congresso, assim como teve e tem a maioria das ditaduras. Então, em nome da preservação da Democracia, protege-se um congresso inepto, incapaz, omisso e malquisto e fecham-se os olhos a seus escândalos? Óbvio que um Congresso assim é que é o coveiro da democracia representativa e não os que procuram, por meios lícitos, corrigir seu curso desastroso e, a longo prazo, catastrófico. Quem faz o que faz é ele, não a imprensa, e o inimigo dele é ele, não a imprensa.
Aliás, historicamente, a maior parte da imprensa brasileira tem defendido as instituições democráticas, nas circunstâncias e visão de cada época.
Grande parte dos políticos hoje estabelecidos, em qualquer nível, esquece o muito que deve à existência de uma imprensa livre. A qual, aliás, não esquenta demais com isso, porque sabe que dor de barriga não dá uma vez só.
Entrevista:O Estado inteligente
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