Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 19, 2009

A Idade da Razão Gaudêncio Torquato

Ganha o prêmio de lógica quem conseguir decifrar esta equação da lavra do presidente Lula, expressa na última terça-feira: a máquina pública é extraordinária, porém ineficiente. Se o que custa "caro no Brasil não é a máquina, é a ineficiência", e como a separação de uma coisa da outra aponta um exercício que extrapola os limites do bom senso, deduz-se que Sua Excelência procurou dar uma no cravo e outra na ferradura, ou seja, massageou o ego de qualificados servidores, com seus "baixos salários", e malhou a estrutura por não acompanhar o ritmo do governo. O esforço de prestidigitação foi um tiro no pé. Como a máquina ainda não emprega robôs que guardam papéis em gavetas, Lula quis se referir, na verdade, aos funcionários lerdos que criam obstáculos e emperram a administração. O presidente arrematou sua ácida peroração à burocracia dando ênfase aos setores que lidam com licença ambiental e pinçando a ironia de que Juscelino Kubitschek, se governasse hoje o País, não conseguiria liberar a pista de pouso para descer com seu aviãozinho em Brasília.

À parte o floreio laudatório que não condiz com a estocada, a verve presidencial procede quanto à burocracia que teima em construir curvas perigosas no caminho no desenvolvimento. Pode ser que a crítica tenha que ver com o viés eleitoreiro embutido no pacote de obras organizado pelo PAC. É oportuno reconhecer, porém, que as camadas burocráticas se tornaram mais densas, nos últimos anos, em consequência do inchamento da máquina e da absorção de quadros alheios aos modernos métodos de gestão e despreparados para cumprir tarefas especializadas. É comum ouvir que núcleos ideológicos fincaram pé em estratégicos nichos da administração, agindo como guardiães partidários, e não como técnicos qualificados. A consequência se faz sentir na tramitação vagarosa de papéis, no trancamento de processos em gavetas, em desvios de encaminhamento de recursos, seja por falta de conhecimento apropriado para julgar as demandas, seja por compromisso ideológico, ou mesmo má-fé.

As demoras na concessão de licenças ambientais - que tanto afligem a ministra mãe do PAC, Dilma Rousseff - não se devem à escassez de gente, como argumentam certos porta-vozes. Nunca a estrutura governamental esteve tão gorda. Em seis anos o governo Lula contratou mais de 200 mil funcionários, acumulando um total de mais de 1 milhão de servidores em trabalho efetivo, que custam algo em torno de R$ 90 bilhões por ano. Da mesma forma, a questão não esbarra em carência financeira, eis que o governo lidera o ranking da gastança desmesurada. Ocorre que o sistema de licenciamento ambiental, imprescindível, diga-se, para o pleno desenvolvimento sustentável, é entendido por muitos burocratas como mero fluxograma locupletado de papéis. Sob esta concepção, o ânimo do estamento se enche de poder. E para amarrar ainda mais os processos existem as barreiras preventivas, consideradas excessivas, formadas por esquadrões do Ministério Público. Como se sabe, após a Constituição de 1988, este grupo passou a atuar de maneira mais firme em defesa de interesses ambientais e difusos. Não raro a crônica das licenças registra casos de arbitrariedades por parte de órgãos licenciadores.

O próprio ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, faz um alerta contra os exageros, ao lembrar que "mais burocracia não significa maior rigor em relação às exigências ambientais". É evidente que o pilar da sustentabilidade deve impregnar os programas governamentais, mas não se imagina que deva ser elevado à condição de gargalo ao fluxo de investimentos, como se pode observar. Em alguns Estados, a obtenção de licença para um empreendimento pode levar anos, fazendo com que investidores desistam de seus planos. Os conflitos que deságuam no Judiciário são motivados, muitas vezes, por ausência de efetivo diálogo entre partes interessadas, excessiva burocratização e visões ideológicas que ferem os parâmetros da razão. Ademais, o próprio Ministério Público carece de entendimento homogêneo sobre a questão ambiental, fato que gera diferentes decisões sobre a matéria.

Por último, há que adicionar ao acervo burocrático o componente psicológico que calibra o ethos nacional. Partículas burocráticas correm no nosso sangue desde os idos tempos da colonização. Basta lembrar que Tomé de Souza, o governador-geral, desembarcou na Bahia, em 1549, carregando um regimento prontinho para enquadrar a comunidade que ainda se iria formar. Quer dizer, a burocracia chegou antes do povo organizado, conferindo ao País uma feição rigorosamente regulamentada. De lá para cá, foram empreendidos muitos esforços para desamarrar os elos burocráticos. Um dos ciclos mais férteis nessa direção foi administrado por Hélio Beltrão, que portava o título de ministro da Desburocratização. Em 1981 ele passou a executar seu plano, que extinguia coisas como o famigerado reconhecimento de firma. Não deu certo. O carimbo voltou com força, a denotar que o caráter nacional precisa ser atestado em cartório. E assim a burocracia inverte os papéis. Como dizia Beltrão, "o Brasil se acostumou a substituir a aplicação do Código Penal - que pune com prisão o crime da falsidade - pela exigência prévia de atestados e certidões negativas. Em vez de se colocar o falsário na cadeia, exige-se dos honestos que comprovem com documentos que não são desonestos. O prejudicado é o honesto e o verdadeiro beneficiado é o falsário, que não se assusta com a exigência de documentos, porque pode falsificá-los".

Essa faceta da cultura, que puxa para trás o trem do desenvolvimento, virá à tona, neste fim de semana, em Comandatuba, na Bahia do velho Tomé de Souza, quando o tema do desenvolvimento sustentável (e a paquidérmica burocracia) animará um fórum que reunirá ministros, empresários, governadores, senadores e deputados. A esperança que o embate franco entre os atores do imbróglio ambiental acabe aproximando o Brasil da Idade da Razão.

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