VALOR ECONÔMICO
A verdade dos fatos é que a atual crise financeira teve como causa a excessiva expansão de crédito e liquidez nos Estados Unidos, país emissor de moeda reserva internacional, e com isso desorganizou o sistema internacional de pagamentos. A crença na ideia mítica de mercados autorregulados e eficientes levou à retração dos órgãos de controle e na desregulação do sistema financeiro, particularmente com a criação do chamado sistema bancário paralelo (shadow banking). E este sistema paralelo multiplicou, através de inovações financeiras, o volume e valor de ativos financeiros em escala global desenvolvendo um imenso mecanismo de criação de liquidez (dólar) doméstica e global. A crise agora está destruindo este sistema.
Assim, logicamente a atual crise financeira deveria ser a crise do dólar. Não é à toa que o presidente do Banco do Povo da China publicou um artigo defendendo a criação de uma nova moeda de reserva e pagamentos internacionais com valor estável e oferta controlada por um organismo global, desvinculada do interesse nacional de qualquer país.
Da mesma forma, os Estados Unidos, isoladamente e unilateralmente, não conseguem mais exercer sozinho o seu "poder imperial" e impor, sobre o resto do mundo, suas decisões, como queria o presidente Bush, tanto é que a nova secretária de Estado Hillary Clinton já mudou bastante a forma de abordagem das questões internacionais, pelo menos na retórica. Nem mesmo o G-7, em que os EUA partilham o seu "poder imperial" com outras nações desenvolvidas, têm legitimidade e poder de atuação global. Com a emergência da China e o despertar de outras nações como a Índia, Rússia, Brasil e outros, o G-7 teve que ser expandido para G-20. Assim, a reunião do G-20 na semana passada tem um significado histórico muito importante, pois é o reconhecimento da emergência da China e de outras nações e que, daqui para frente, as questões econômicas internacionais terão que ser partilhadas como um grupo maior de nações.
O presidente Obama anunciou também na reunião do G-20 que o mundo não poderá mais viver da excessiva expansão de consumo americano, isto é, da excessiva expansão de crédito (dólar) traduzido internacionalmente nos seus gigantescos déficits em transações correntes. Com a crise temos uma nova era.
Disse acima que a atual crise financeira é a crise do sistema de criação de dólar. Mas a crise do dólar ainda não se materializou - nem ninguém espera que ele venha ser substituído no curto prazo. É uma questão complexa e para entendê-la é preciso lembrar que o país ou organismo emissor de moeda tem aquilo que de Gaulle chamava de "privilégios exorbitantes", referindo-se aos ganhos de seignorage e outros que os EUA passaram a ter com a imposição do dólar como moeda reserva. Estes "privilégios exorbitantes" não se conseguem gratuitamente e é preciso ter pelo menos dois requisitos fundamentais: desenvolver instituições com credibilidade e confiança e condições materiais para exercício efetivo de poder policial para que, sob sua proteção, todos os participantes do sistema aceitem um pedaço de papel, um registro eletrônico, um passivo ou uma promessa como tendo valor e ser aceito universalmente como meio de pagamento internacional.
Para melhor entender esta questão em jogo vejamos como os EUA passaram a ter "privilégios exorbitantes". Já na Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos eram um país rico com pretensões expansionistas e sua elite dirigente revelava aquilo que se chamou de "presunção imperial". Como grande vitorioso, obtém uma hegemonia política mundial absoluta, e com tropas de ocupação em praticamente todos os países importantes, com exceção de poucos países como a França e Suíça. Logo após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos conseguiram, sem dificuldade, impor o dólar como moeda reserva internacional, inicialmente lastreado em ouro. Não só manteve tropas de ocupação nos países, como espalhou pelos mares do mundo porta-aviões exercendo, de fato, o poder policial global. Tendo a economia mais poderosa e desenvolvida do mundo e, após a Grande Depressão, um sistema bancário forte e eficiente, constituído através de regulação e controle, conseguiu conquistar a credibilidade e confiança no dólar. Tornou-se, a rigor, o centro do império global, arcando inclusive com os custos militares para "manter a paz" e um ambiente "pacífico" para as transações econômicas mundiais.
Com isso, os Estados Unidos além do ganho de seignorage global, passaram a ter outros "privilégios exorbitantes". Passaram a ser os "banqueiros do mundo", com um sistema financeiro com credibilidade e confiança. Seus passivos - ativos detidos pelos estrangeiros - são sempre em dólar, moeda que emite, e rendem uma taxa de juros muito menor do que os ativos que Estados Unidos detém no exterior. Além disso, os ativos detidos pelos estrangeiros nos Estados Unidos são financeiros enquanto que aqueles que detêm no exterior, cerca de 70%, são ativos reais, em moeda local de cada país. Nos últimos 15 anos, este diferencial de rendimento foi de cerca de 3,3%. E como seus passivos são em dólar, qualquer desvalorização desta implica em transferência de riqueza para os Estados Unidos. Com isso, os Estados Unidos tornaram-se os importadores em última instância, com o privilégio de ser o único país do mundo que pode consumir e absorver muito mais do que produz, isto é, ter déficits em transações correntes permanentemente, nem necessariamente ampliar o seu passivo externo líquido. Na condição de uma crise no balanço de pagamentos dos Estados Unidos, com crise do dólar e sua desvalorização, isto significaria prejuízo para os demais países detentores de ativos em dólar.
É por isso que a China começa a dar sinais de inquietação, mas com muita cautela. Mesmo com a crise financeira e excessos que tanto o Fed como o Tesouro estão sendo obrigados a cometer, o dólar continuará reinando. A substituição dos Estados Unidos e a retirada de seus "privilégios exorbitantes" não será tarefa fácil. Menos ainda a construção de uma alternativa. Com a crise do dólar, o que vamos certamente assistir será um período de maior desarmonia com a contestação do poder de enforcement global americano, sob o qual as transações e contratos aconteciam com alguma segurança e garantia.
Entrevista:O Estado inteligente
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