Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 04, 2009

O complexo de vira-lata Merval Pereira

O GLOBO

O grande escritor Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro é "um narciso às avessas, que cospe na própria imagem". Ele cunhou como complexo de vira-lata a "inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo". Mas há o "complexo de vira-lata" ao contrário, o que se encanta com a pompa dos cerimoniais do primeiro mundo, especialmente quando se trata de uma monarquia, e infla o ego por qualquer gesto de aceitação. Pois esse complexo novamente aflorou diante do sucesso do presidente Lula em sua viagem a Londres para a reunião do G-20. Bastou que ele aparecesse sorridente na foto oficial, sentado à esquerda da rainha Elizabeth II, para que muitos de seus áulicos atribuíssem sua colocação à evidência de que nunca antes este país recebeu tanta consideração por parte dos países do primeiro mundo.

Muita tinta foi derramada para elogiar a posição incomparável que o país alçara na era Lula. A explicação para a posição privilegiada de Lula, porém, é a mais prosaica possível: no cerimonial do Palácio de Buckingham, antiguidade é posto.

Por ser o chefe de Estado mais antigo no cargo no momento, Lula ficou bem na foto. É verdade que nem o próprio presidente, embora transparecesse na fisionomia toda a alegria de que foi possuído por estar em posição tão destacada, nem o Itamaraty deixaram transparecer oficialmente sinal de deslumbramento.

Mas as informações "de bastidor" ressaltavam a suposta evidência do destaque à figura de Lula. O presidente brasileiro também reagiu com bastante equilíbrio diante da demonstração de admiração pública do presidente americano, Barack Obama, atribuindo a uma gentileza sua os elogios que fez. Nesse caso, aliás, Lula tinha razão para estar convencido de que os elogios eram sinceros, e não apenas agrados diplomáticos.

Seu primeiro encontro com o presidente americano em Washington foi bastante cordial, conforme relatos internos, a tal ponto que o brasileiro sentiu-se confiante, ao final, para perguntar se poderia dar dois conselhos a Obama.

O primeiro foi para que acompanhasse com atenção a América Latina e o processo de democratização da região. Lula pediu a Obama que não se impressionasse com a retórica de Hugo Chávez na Venezuela, e olhasse a região como um todo, que precisa do apoio dos Estados Unidos.

Em seguida, preocupado com a presença maciça de assessores de Bill Clinton na administração Obama, o que indicaria, no seu modo de ver, uma influência grande na avaliação da América Latina e do Brasil, pediu que o presidente americano ouvisse "seu coração" sempre que estivesse em dúvida sobre que ação tomar.

Segundo versões de assessores de Lula, Obama ficou emocionado com a abertura de Lula, abraçou-o e chamou-o de "um verdadeiro amigo".

O relato, sem entrar no mérito das considerações políticas, é coerente com a efusão e a intimidade com que o presidente Barack Obama recebeu Lula, chamando-o de "o cara".

Lula, no entanto, deixou-se levar pela vaidade quando, em uma entrevista, perguntou se não era "chique" emprestar dinheiro para o FMI, dizendo que queria entrar para a história nessa condição, depois de ter passado a vida pedindo "Fora, FMI" nas passeatas e manifestações.

Foi uma "liberdade poética" dispensável do presidente, pois não apenas o Brasil não vai "emprestar" ao FMI, como, sendo sócio daquele organismo internacional, sempre teve dinheiro nele, mesmo quando pegava empréstimos.

O que o Brasil poderá fazer, juntamente com outros países, é aumentar sua participação no FMI, numa política global de combate à crise econômica.

Uma questão que não está ainda resolvida, e é fundamental para a recuperação do sistema financeiro internacional, é a dos chamados "ativos podres".

O economista Paulo Vieira da Cunha, ex-diretor de mercados internacionais do Banco Central e atualmente trabalhando em Nova York, lembra que a questão está no valor residual de mercado dos papéis podres.

Estamos acostumados, diz ele, com valores em torno a 30% ou menos do valor de face, mas, dado que uma boa parte dos ativos podres nos Estados Unidos são AAA, e de gerações antigas, por exemplo, de antes de 2006-5, com apreciação real do valor dos imóveis, muita gente acha que eles "valem" 60-65% do valor de face.

Como estão "marcados" a 90-95%, o "golpe" no balanço seria de 30%. Se é esse o tamanho do rombo, diz Paulo Vieira da Cunha, é concebível que o plano de resgate funcione, ainda que inicialmente seja muito pequeno.

A ideia é que, "limpos", os bancos conseguiriam atrair capital privado - ou, alternativamente, o "resíduo" de aporte do governo seria tolerável.

Se o desconto dos papéis, no entanto, for maior, digamos de 50%, o custo do PPIP seria enorme. Se, por hipótese, os papéis valerem apenas 30%, neste caso não haveria outra forma senão o governo nacionalizar os bancos, comenta o economista Paulo Vieira da Cunha.
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Quando assumi a coluna, em junho de 2003, escrevi que o espírito de repórter, essa caça diária da notícia, era o que me aproximava do antigo ocupante deste espaço, o jornalista Marcio Moreira Alves, "que já marcou sua presença na política e no jornalismo brasileiros".

Marcito continuou escrevendo na página 7 do jornal, para onde levou seus "sábados azuis", que se transformaram em "domingos azuis".

Marcio Moreira Alves, depois que teve que parar de escrever mesmo aos domingos devido à doença, continuou defendendo que se escrevesse mais assiduamente sobre políticas públicas, que foi a base de sua proposta de coluna para o jornal, voltada para a política no sentido mais amplo, e não apenas o dia a dia de Brasília.

Minha homenagem ao político, ao homem público, ao jornalista e ao amigo, cuja luta terminou ontem.

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