O Estado de S.Paulo - 15/06/11
O filme O Discurso do Rei (dirigido por Tom Hooper) tem vários denominadores comuns com um outro filme, seu competidor, Cisne Negro (dirigido por Darren Aronofsky). Ambos lidam com temas referentes a matrizes importantes daquilo que se chama de "cultura" termo que no contexto artístico denota, com todos os preconceitos, refinamento ou "alta cultura". O filme sobre George VI, avô desse príncipe recém-casado com pompa e circunstância, lida com os dramas da aristocracia; já Cisne Negro trata da produção de uma nova versão do balé O Lago do Cisne, de Tchaikovsky. Em ambos os enredos, precisa-se de alguém capaz de desempenhar simultaneamente dois papeis e de realizar dois discursos.
No caso do rei, cujo apelido era Bertie, é preciso torná-lo capaz de falar em público com a segurança requerida de um príncipe e de um rei, algo tranquilo não fosse a gaguez impeditiva de realizar a banalidade que vira proeza. Pois Bertie só é capaz de produzir um discurso - o do filho e do marido. Algo trágico na medida em que ele é alçado ao papel de rei pela renúncia de seu irmão maior, o herdeiro do trono.
No Cisne Negro, o drama se assenta na incapacidade de uma bailarina tecnicamente perfeita, porém incapaz de desempenhar o papel do Cisne Negro, a dimensão transgressora do Cisne Branco. Porque ela não é capaz de realizar o papel infrator, mesmo num balé, nos mostra como o bloqueio desencadeia em Nina todo um surto psicótico que conduz à sua própria destruição.
Pela mesma lógica dos impasses emocionais, Bertie não é capaz de falar (e de ser um "Rei Branco") porque a sua dificuldade em discursar o leva a ser uma contradição em termos: um rei que personifica seu povo é impedido de comunicar-se com ele.
Como vencer esses impasses semelhantes ao do professor que detesta dar aulas (conheci alguns); do acadêmico que não consegue escrever livros geniais prometidos anos a fio (conheci vários), do amante que tem um surto de impotência num encontro amoroso mais do que sonhado (sei de três ou quatro casos e conheço um intimamente); do comandante congelado pelo medo no campo de batalha (vi isso no cinema muitas vezes); do amor realizado por ódio e por vingança contra o marido da ex-namorada (li isso num livro do Kundera); do herói acusado de um crime que procura sua culpa (leia Kafka), do culpado em busca de castigo (leia Dostoievski); ou da moça que escolhe não escolher mas, em vez de transformar-se em Anna Karenina ou Ema Bovary, vira a Dona Flor do saudoso e grande Jorge Amado - é isso que constitui a trama desses filmes. E por isso, emocionam.
Pois cada impasse produz um posicionamento. Há os que abrem e os que fecham. O do rei foi positivo. Em vez de fechar-se em si mesmo, ele, com ajuda da mulher, (sua grande ponte para o mundo) procura um terapeuta que, sendo um amigo especial - uma pessoa à qual se conta tudo -, engendra a confiança. Essa corda que permite descer pela janela sem o esborrachar-se no piso do radicalismo e da negação. E todo radicalismo é, de fato, uma negação. Já o caso da bailarina é mais complexo. No seu mundo, há apenas um diretor ambicioso, amigas competitivas e uma mãe dominadora e ex-bailarina competitiva que impede que a filha faça um caminho diverso do seu.
Eis um quadro curioso, cuja simetria me lembra um daqueles saudosos ensaios de Claude Lévi-Strauss. De um lado, um príncipe gago que não pode ser rei porque só se entra nesse papel produzindo um solene juramento numa abadia, num ritual que é apenas pompa e circunstância - essas coisas cuja emoção é justamente suprimir a emoção. Do outro lado, temos a bailarina ultrapreparada, mas incapaz de revelar as emoções necessárias ao papel de um cisne transgressor. Num caso, um excesso de emoção impede o desempenho de um papel herdado e, vejam a tragédia, não escolhido, mas que tem de ser desempenhado. Noutro, há uma ausência de emoção a qual corresponde a um excesso de técnica que, por sua vez, impede o desempenho de um papel escolhido e desejado.
Em paralelo, há uma ênfase no ouvido e na visão. No entendimento pela conversa franca e honesta que liberta e tira o pó debaixo do tapete, pois até mesmo aristocratas têm problemas, a dificuldade é ultrapassada. No caso do cisne, entretanto, há uma predominância do olhar cujos reflexos reiteram ao personagem as distorções de sua vida.
Alguém disse, faz tempo, que a passagem do ouvido e da leitura para a imagem nua e crua era o começo de tragédia e um prenúncio de fim de um mundo. Esses filmes, especialmente o segundo, não chega a tanto. Mas acentua a necessidade do outro como um guia. Como um ouvinte que impede destruir as pontes entre nós e esses outros que se escondem dentro dos nossos corações.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2011
(2527)
-
▼
junho
(310)
- Serra: até as paredes sabem sobre Mercadante
- Nem tanto ao mar Dora Kramer - Dora Kramer
- Mais coerência Celso Ming
- Pressionada MERVAL PEREIRA
- Pão de Açúcar-Pão francês MIRIAM LEITÃO
- Pão de Açúcar-O cofre e os negócios JANIO DE FREITAS
- O que é Estado laico? IVES GANDRA MARTINS FILHO
- Amigo ou inimigo, o jogo continua SERGIO FAUSTO
- Crônica ou parábola? ROBERTO DaMATTA
- Indecentes úteis DORA KRAMER
- Exorbitâncias do BNDES Editorial - O Estado de S.P...
- Encruzilhada MIRIAM LEITÃO
- Sem convencer Merval Pereira
- A pergunta ANTONIO DELFIM NETTO
- A Europa compra tempo Celso Ming
- Regime diferenciado e imoral José Serra
- Sigilo para incompetência? Rolf Kuntz
- Veja Edição 2223 • 29 de junho de 2011
- Verdes e cidadania MERVAL PEREIRA
- O tamanho da sombra MIRIAM LEITÃO
- Mundo bizarro José Paulo Kupfer
- Um brasileiro na FAO Editorial- O Estado de S.Paulo
- Os avanços tecnológicos e as novas formas de guerr...
- Bandidagem agrária - Xico Graziano
- GOVERNO SÉRGIO CABRAL: O REI ESTÁ NU !
- É mais investimento Celso Ming
- Redução de danos Dora Kramer
- A competência generosa José Serra
- Coisas estranhas Paulo Brossard
- FHC e o carcereiro ROBERTO POMPEU DE TOLEDO Revist...
- Falácias e verdades MAÍLSON DA NÓBREGA Revista Veja
- No Reino dos Coliformes CLAUDIO DE MOURA CASTRO Re...
- MINISTÉRIO DE ALOPRADOS REVISTA VEJA
- Segredos de liquidificador MELCHIADES FILHO
- Diga aí, Cabral! RICARDO NOBLAT
- Não existe almoço de graça LUIZ FELIPE PONDÉ
- Água no etanol JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
- Sinal vermelho na Petrobrás EDITORIAL O Estado de ...
- Segredo de Estado e corrupção Carlos Alberto di Fr...
- Como surge o separatismo Paulo R. Haddad
- Paulo Renato sabia o que fazer na Educação e perse...
- Razões que a razão desconhece FERREIRA GULLAR
- Os oráculos MIRIAM LEITÃO
- Depois do dilúvio de dólares VINICIUS TORRES FREIRE
- Sejamos civilizados DANUZA LEÃO
- Eliane Cantanhêde Hackers pela ética
- A Era dos hackers Alberto Dines
- Ideologias Merval Pereira
- Suspense grego Editorial Estadão
- A ficha caiu Adriano Pires e Abel Holtz
- Itália e Brasil, aproximações Luiz Sérgio Henriques
- Presos na teia de aranha Gaudêncio Torquato
- Esboços de uma obra capital José Arthur Giannotti
- Desonestidade é cultura João Ubaldo Ribeiro
- Obama aciona as reservas Celso Ming
- Em nome da Copa Dora Kramer
- Alimento e petróleo assustam Alberto Tamer
- O visto de Battisti é ilegal Editorial O Estado de...
- Obama aciona as reservas Celso Ming
- Inquietação na Grã-Bretanha Gilles Lapouge
- A política vai mudar KÁTIA ABREU
- Redes & redes! Cesar Maia
- Cabral, o bom amigo FERNANDO DE BARROS E SILVA
- Laranja madura na beira da estrada... Sandra Caval...
- Na contramão VALDO CRUZ
- Governabilidade MERVAL PEREIRA
- Crise de confiança Celso Ming
- Segredo é para quatro paredes Fernando Gabeira
- Disputa tecnológica Merval Pereira
- O Supremo e o custo do emprego VINICIUS TORRES FREIRE
- Antes da queda DORA KRAMER
- Proposta irresponsável O Globo Editorial
- O grande momento de FH Rogério Furquim Werneck
- A luta do século Nelson Motta
- Fed diz que fez o que podia Alberto Tamer -
- Governo reage:: Merval Pereira
- Sem eira nem beira DORA KRAMER
- Drogas e gravatas CONTARDO CALLIGARIS
- A promiscuidade na vida pública EDITORIAL
- Gregos e bárbaros MIRIAM LEITÃO
- Festa macabra DEMÉTRIO MAGNOLI e ADRIANO LUCCHESI
- Muito além do Big Mac JOSÉ SERRA
- Os sigilos e a presidente EDITORIAL O Estado de S....
- Alegria e farsa nos mercados VINICIUS TORRES FREIRE
- Recesso à vista! VALDO CRUZ
- Metas e inflações MIRIAM LEITÃO
- O último tango em Atenas ALEXANDRE SCHWARTSMAN
- Jabuti maroto DORA KRAMER
- Elogio ao sociólogo que virou tese JOSÉ NÊUMANNE
- Desigualdade persiste MERVAL PEREIRA
- Desmandos e calotes ROLF KUNTZ
- O piano e o banquinho ELENA LANDAU
- O problema do passado Roberto DaMatta
- A economia de Dilma é essa aí VINICIUS TORRES FREIRE
- Absoluto e relativo MIRIAM LEITÃO
- Visão autoritária MERVAL PEREIRA
- DEPUTADOS NÃO LEGISLAM?
- A Europa vacila CELSO MING
- Exercício da razão Dora Kramer
- A presidente hesita João Augusto de Castro Neves
-
▼
junho
(310)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA