Nosso universo social se divide em bens e serviços e, na categoria dos
bens, há os móveis e os imóveis. Os primeiros vão da camisa (que,
dizem os sábios, só precisamos de uma unidade para sermos felizes) ao
automóvel, a casa e a conta bancária que fala daquilo que permeia -
como as orações no mundo religioso e o favorecimento partidário no
político - tudo. Sobram, é claro, os "móveis" que fabricam a paisagem
da casa e são o foco ou a imagem central - símbolos como diriam
Geertz, Victor Turner ou Lévi-Strauss - do que chamamos de
"propriedade privada". Pois quase sempre começamos nossas vidas de
casados comprando os móveis (a cama e a mesa) da casa para depois
completarmos o seu interior com poltronas, armários, aparadores,
guarda-roupas, criados-mudos e esse objeto impar e, até onde vai minha
enorme ignorância e vã e superada antropologia, as cristaleiras.
Eu só tive consciência desse móvel quando fui aos Estados Unidos e
verifiquei que os americanos davam mais valor às suas vastas e
confortáveis poltronas e estantes do que a esse repositório de
"cristais", situado justamente num local de destaque nas salas de
jantar ou em outros espaços nobres das residências. Ali, conforme num
certo dia nebuloso, perdido no vasto labirinto da minha memória, mamãe
(e não papai que estava mais ligado na primeira gaveta do seu
guarda-roupa, a única trancada e com direito a chave de nossa casa)
dissertou sobre cristais da Baviera e da Boêmia, pegando com extremo
cuidado terrinas e xícaras de chá tão finas quanto papel, que teriam
vindo da China e seriam a única herança de vovó Emerentina. Uma
herança obviamente passada por linha materna (de mães para filhas) tal
como canetas, relógios e revólveres passavam de pai para filho. Um
belo exemplo de descendência paralela que, por motivos que não posso
detalhar aqui, faz parte da minha vida intelectual.
O fato é que na América sempre tocquevileana não existiam essas um
tanto ostensivas cristaleiras feitas de vidro e espelhos, um móvel que
lembra uma catedral, uma caixa de joias e os cetins que envelopavam
(revelando, contudo) o corpo das mulheres. Objeto destacado da casa a
ser visto, admirado e eventualmente aberto com extremo cuidado para
visitantes ilustres ou ocasiões preciosas como aniversários, mortes e
casamentos - os grandes ritos de passagem que marcam as nossas vidas.
Dir-se-ia que a vida marcada pelo ascetismo laico calvinista e pela
religiosidade cívica rousseauneana bloqueava essas demonstrações
ostensivas de coisas preciosas, já que, para eles, o viver para dentro
era mais importante do que essa vida cristalizada para os outros
(sobretudo para as visitas importantes ou de maior prestígio), como é
o nosso caso. Vi muitas cristaleiras na minha infância e juventude e,
quando casei, compramos a nossa, que imitava o móvel dos nossos lares
de origem. Nossa cristaleira foi inaugurada com um singelo conjunto de
cinco pequenas taças de cristal da Boêmia de tonalidade vermelha e
hastes leves e delicadas como as pernas das bailarinas. Taças que, com
o devido elixir (no caso, o vinho do Porto) ajudam a produzir esses
sonhos que são a matéria de nossas existências.
Um dia, numa discussão acalorada entre professores mais velhos, ouvi
de um deles o seguinte: "O Fulano procede como um macaco em
cristaleira!" Jamais ouvi definição melhor daquele colega que por
qualquer coisa, usava um canhão para matar um passarinho e fazia uma
tempestade num copo d"água, numa descalibragem tão recorrente nos
sistemas autoritários, de Estado forte, nos quais a cleptomania se
legitima em cleptocracia como faz prova hoje em dia a nossa elite
política enriquecida e, mais que isso, aristocratizada com o dinheiro
dos nossos impostos que segue diretamente não para obras públicas, mas
para as suas cristaleiras.
Nas casas tradicionais do Brasil, as cristaleiras representavam - ao
lado do branco dos vestidos das noivas e da limpeza impecável da casa
- a pureza das mulheres; e a mulher como símbolo maior da pureza. Como
figura situada entre os anjos e os homens, por contraste com as que
(sem casa e cristaleira) dialogavam com as forças satânicas que,
entretanto, permitiam o teste e demonstravam a existência desse dom
complexo chamado de "liberdade" que nos foi dado por Deus na forma do
livre arbítrio. Dom sem o qual faria com que tudo fosse determinado e
justificado, tirando o mérito das escolhas e impedindo que o mundo
tivesse significado. Pois o problema não é a cristaleira, mas a
inefável transparência que a constitui, deixando ver em dobro tudo o
que colocamos dentro dela.
No plano coletivo, sou inclinado a sugerir que a cristaleira de um
país é o seu governo e, no seu governo, o seu Parlamento. A tal
transparência tão invocada pelos mais atrasados coronéis que hoje
mandam na nossa riqueza, gastando-a com nomeações de partidários e
familiares. Transparência que é, de fato, uma mera palavra de ordem
para encobrir os moveis de chumbo de um Brasil sem crítica, sem
contraditório político, sem - enfim - igualdade e transparência. Esse
translúcido móvel feito em vidro e espelho que permeava as casas que,
como a República e a Democracia, guardava pureza, honra, compaixão e
uma honestidade que sumiram da política nacional.