VEJA
A exemplo dos contestadores do filme A Vida de Brian (alugue hoje mesmo), do grupo inglês Monty Python, os inimigos atuais da civilização perguntam em tom desafiador e eu lhes respondo com os fatos:
O Programa (Nacional-Socialista) dos Direitos Humanos, na forma como está, submete a Constituição ao que chamo, em homenagem ao número do PT, 'Ato Institucional nº 13'. Os 'direitos humanos' são, no AI-13, o que a 'segurança nacional' era no AI-5 do regime militar. Em nome dela, podia-se suspender qualquer garantia; em nome deles, também.
– O que foi que esse modelo nos deu?
– A democracia!
– É verdade! Ele nos deu a democracia. Fora a democracia, o que foi que esse modelo nos deu?
– A segurança jurídica!
– É, ele nos deu isso também. Fora a democracia e a segurança jurídica, o que nos deu esse modelo?
– A igualdade perante a lei!
– Tá bom, vá lá. Fora a democracia, a segurança jurídica e a igualdade perante a lei, o que é que esse maldito modelo nos deu?
– As vacinas?
– Além da democracia, da segurança jurídica, da igualdade perante a lei, das vacinas, respondam: o que nos deu esse modelo?
– Os antibióticos!
– Perguntarei pela última vez: sem contar a democracia, a segurança jurídica, a igualdade perante a lei, as vacinas e os antibióticos, que diabos nos deu esse modelo?
– O vaso sanitário!
– Ora, cale-se!
A Conferência de Cultura, realizada há pouco mais de duas semanas, reuniu essa gente pitoresca que poderia ter saltado da tela do filme do Monty Python e definiu como uma das 32 prioridades de governo "registrar, valorizar, preservar e promover as manifestações de comunidades e povos tradicionais, itinerantes, nômades, das culturas populares, comunidades ayahuasqueiras" e por aí vai. Isso deve ser feito com recursos do estado, o Leviatã transformado em incubadora de estranhezas. Se você, leitor, não se encaixa em nenhum dos grupos acima, então é só um "entre outros", integrante de uma maioria que encarna aquela outra "tradição", permanentemente saqueada por particularismos. Refiro-me à velha e desprezível civilização ocidental, com o seu opressivo culto à razão, à ciência, à segurança jurídica, à produção, ao desenvolvimento, à propriedade privada, à língua pátria, às vacinas e aos antibióticos. Essas bobagens que nos têm causado tantos dissabores e que afastam o homem da sua "verdadeira essência".
O caso dos "ayahuasqueiros", os consumidores do daime, é emblemático. Eu não sei qual é a "verdadeira essência" do homem. Talvez eles saibam. Parece que a bebida os ajuda a chegar lá. Só não entendi por que essa "cultura" tem de ser protegida pelo estado, que deve, segundo a proposta, investir dinheiro público na sua difusão. Gilberto Gil, quando ministro, encaminhou um processo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que o uso do chá seja considerado "patrimônio imaterial do povo brasileiro", ainda que você, leitor, reacionário como é, não tome nada além de chá de camomila. Os mais ousados arriscam contornar a melancolia desta vida besta com Prozac ou Zyban, que vieram à luz depois de muitas décadas, e milhões de dólares, de pesquisa. Os antidepressivos podem merecer uma ode, jamais uma litania; no máximo, um canto pagão, nunca um hino místico.
A proposta da conferência é um sintoma, não o mal em si. Não tenho sobre o futuro uma visão apocalíptica ou redentora. Não aposto nem em danação nem em salvação. A história não tem epílogo. Há uma perspectiva bem menos dramática do que o fim dos tempos. É a mediocridade, a vida das exigências rebaixadas. No Brasil e mundo afora, uma atmosfera de boçalidades doces e caridosas, excepcionalmente violentas, vai espalhando os seus miasmas. A língua alemã tem uma palavrinha bacana que merece entrar neste texto: Zeitgeist, ou "espírito do tempo". Esse espírito anda muito propício ao assalto à razão, à ciência, à segurança jurídica, à produção, ao desenvolvimento, à propriedade privada e à língua pátria – e isso serviria à construção do "novo homem". As velhas esquerdas acreditavam que o comunismo era o portal da nova era. Deu errado. As novas esquerdas desistiram de reinventar a civilização. Dá muito trabalho. Basta-lhes depredá-la.
Essa depredação da ordem democrática exige agora o patrocínio do estado e é promovida por seus próprios agentes. Em duas conferências, a de comunicação e aquela de cultura, os militantes aprovaram propostas que, se aplicadas, resultarão em censura à imprensa. O Programa (Nacional-Socialista) dos Direitos Humanos, na forma como está, submete a Constituição ao que chamo, em homenagem ao número do PT, "Ato Institucional nº 13". Os "direitos humanos" são, no AI-13, o que a "segurança nacional" era no AI-5 do regime militar. Em nome dela, podia-se suspender qualquer garantia; em nome deles, também.
Lula chegou à síntese perfeita "dessa nova segurança nacional" na semana passada, quando atacava, mais uma vez, a imprensa: "É triste quando a pessoa tem dois olhos bons e não quer enxergar. Quando a pessoa tem direito de escrever a coisa certa e escreve a coisa errada". As ditaduras costumam cassar do jornalismo o direito de escrever certas coisas. Mas só os regimes totalitários se arvoram em decidir o que é "certo" ou "errado". As ditaduras não têm vergonha de se impor pela violência. O totalitarismo, violento se preciso, quer se impor como senhor da virtude. O AI-5 foi pensado para uma ditadura; o AI-13, que pune quem "escreve a coisa errada", para um regime totalitário. Aquele só podia ser imposto debaixo de porrete; este outro tem o apoio entusiasmado de supostos "representantes da sociedade civil", as "minorias organizadas", e espera contar com nossa sujeição voluntária.
As tropas de assalto à ordem democrática estão ativas. Um desses ongueiros financiados pela Fundação Ford justificou assim o "caráter democrático" do programa de direitos humanos: "Ele foi debatido por 14.000 pessoas!". É mesmo? Um deputado federal em São Paulo precisa de, no mínimo, uns 100.000 votos para ter direito a ser apenas um voto na Câmara. Um senador precisa de mais de 8 milhões! Os militontos pretendem destruir o valor universal da democracia com o apoio de 14.000 sectários...
"Estou com saudade dos velhos marxistas", pensei alto outro dia em conversa com Diogo Mainardi. Ele respondeu com uma surpresa silenciosa, o que me permitiu emendar: "Você se lembra do tempo em que a gente contestava um pensamento que, por mais cretino que fosse, ainda aspirava à condição de um humanismo? Sabíamos que as teses daquela gente, quando aplicadas, haviam resultado no horror. Mas tínhamos de combater um aparelho teórico que, embora construído com mentiras, tinha ao menos bibliografia. Hoje restaram a barbárie, a pistolagem e a ignorância escandalosa". Eu estava, leitor, sob o efeito de uma terrível droga moral, que havia chegado ao blog na forma de um comentário.
VEJA noticiou na semana passada que Delúbio Soares, aquele!, foi patrono de uma turma de formandos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Goiatuba, no interior de Goiás, uma instituição pública. Ele pagou 6.000 reais e deu uma palestra sobre "ética na política". Abordei o assunto e recebi uma mensagem de um professor da escola, membro do PT local. Numa língua entre o português e o javanês antigo, ele tentou me explicar: "Temos um entendimento sobre o mensalão bem mais amplo. Não achamos que a criminalização das pessoas que são acusadas de praticarem atos semelhantes (financiamento de campanha com dinheiro não contabilizado) venha resolver os problemas de corrupção de nosso país"... Ele tem razão. O entendimento civilizado dessa questão é mesmo menos amplo: lugar de bandido é na cadeia.
A civilização vencerá no fim? Essa história não tem fim. Estaremos sempre no começo.
Entrevista:O Estado inteligente
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