O Estado de S. Paulo - 28/03/2010
Incrível, porém verdadeiro. O passado mais remoto encontra-se com o presente para rezarem, juntos, a mesma oração eleitoral. Basta ver Dilma Rousseff e José Serra caprichando nas recomendações feitas por Quinto Túlio Cícero ao irmão, o grande tribuno e político Marco Cícero, no ano 64 a. C., quando este se preparava para enfrentar Catilina na disputa pelo consulado de Roma. Quinto ponderava no final de uma longa carta: "Seja mais cuidadoso na última etapa e na conclusão de suas tarefas e atividades, a fim de que o terceiro ano de seu governo, como o terceiro ato de um espetáculo, dê a impressão de ter sido o mais perfeito e belo." É exatamente isso que a ministra-chefe da Casa Civil faz neste momento de apoteose da era Lula, ao perambular por Estados e inaugurar obras, mesmo algumas inacabadas. Quando o governador paulista se esforça para fazer o balanço de sua administração, mostrando ações acabadas e também projetos iniciantes, segue o ritual daquele que até merece o título de primeiro profissional de marketing político da História.
Entre os conceitos de política como a arte do possível e a arte de tornar possível o impossível, os nossos atores optam pela segunda hipótese. O apanhado dos últimos dias dá conta de um acervo capenga: instalação de um PAC-2 quando o primeiro PAC registra 54% de obras que nem saíram do papel; inauguração de maquete de ponte; eventos em torno de pedras fundamentais e até de "demolições"; reinauguração (pela quarta vez) de linha férrea; inauguração de obras que voltam a ser canteiros e de outras a serem reinauguradas pelo futuro presidente da República. É evidente que postulantes a cargos majoritários se esmeram na pintura final dos governos que comandam ou integram, cada um decorando as fachadas com tintas de perfeição e beleza, no intuito de atrair, desde já, a atenção do eleitorado e, mais adiante, fisgar seu voto.
A performance de candidatos para ganhar a simpatia das massas faz parte da liturgia da política, principalmente em ciclos eleitorais. Não raro, porém, ultrapassa os limites do bom senso, adquirindo tons farsescos. Na tentativa de cooptar a atenção dos conjuntos sociais, motivando-os ao engajamento eleitoral, arruma-se um roteiro que implica torrente de frases de efeito, retumbante prestação de contas, com descrição de programas e obras. Acordo tácito se instala entre Justiça Eleitoral e competidores, a primeira impondo pequenas multas por dribles na lei - que proíbe campanha agora - e os segundos assumindo a cara de pau. Os exageros são frequentes. Oceânica distância se estabelece entre fato e versão. A manipulação ocorre também por meio de vitimização. Ou de matreirice. Ao ironizar punição imposta por ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Lula desculpa-se, ao inaugurar obras do PAC em Osasco(SP), por não poder dizer o nome de sua candidata, incitando o público a gritar seu nome.
As estratégias de dissimulação avançaram na esteira do chamado marketing político, ignorando limites éticos e regras voltadas para preservar o maior patrimônio do ator político, que é sua identidade. Desde Collor, com a exacerbação de atitudes - voar em avião supersônico, fazer cooper diário arrastando uma fileira de jornalistas -, os nossos governantes passaram a frequentar os salões espalhafatosos do marketing. O que diria Jânio Quadros, cheio de autoridade, ao receber o conselho de um marqueteiro sobre como se vestir e falar? Imaginem Tancredo Neves, matreiro e com domínio total de política, orientado a estampar o sorriso e a jorrar besteiras que tanto nos acostumamos a ouvir nesses tempos de "preamar de nulidade", de que nos fala o bigodudo Nietzsche ao retratar a miséria mental de seu tempo.
A engenharia franksteiniana desse marketing sem fronteiras tem sido usada para artificializar discursos, apagar histórias pregressas, adicionar adereços extravagantes aos figurinos e enfeitar a paisagem com uma estética multicolorida: mãos sujas de óleo de plataformas de petróleo, crianças no colo, braços erguidos em palanques, acenos e abraços efusivos no meio de multidões. Para coroar a felicidade extrema, jamais sentida na História, peças publicitárias exibem as gentes do País, pessoas impecáveis com seus dentes brilhando na boca, crianças e velhos, homens e mulheres, feios e bonitos, altos e magros, nos campos e nas cidades. Sob o painel do orgulho cívico, não há quem resista ao festival de pompa e exuberância. A fosforescência comunicativa invade espaços, encontrando-se, em cada unidade da Federação, com as luzes que governos estaduais mandam acender para iluminar os ambientes de suas administrações neste último ano.
Os estratagemas subjacentes à massa propagandística têm o claro objetivo de cooptar a adesão das massas. "Venham para o nosso lado, elejam quem realizou obras; tomem distância de outros que nada fizeram; fizemos o que nunca outros foram capazes de realizar." Se o foco é o obreirismo faraônico - o volume monumental de obras -, que parece agradar em cheio aos grupamentos eleitorais, escasseiam menções a valores, princípios e ideários. Moral, ética, zelo, respeito, disciplina, fidelidade e solidariedade são termos que se afastam da esfera política para se refugiar nas organizações não-governamentais. E assim a política espetacularizada vai sufocando os pulmões que a oxigenam. Sob essa nova ordem, as massas são submetidas a peças deprimentes.
O que fazer para resgatar o grande discurso? Voltar a Quinto Túlio. Que aponta outra recomendação, logo no início da carta ao irmão: "Que cidade é essa? Que cargo eu quero? Quem sou eu?" Três perguntas fundamentais. Se os candidatos responderem a essas singelas perguntas, sem firulas, ajustarão o foco do discurso dizendo o que pensam e como governarão o País. Sem malabarismos.
Entrevista:O Estado inteligente
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