O Globo
Domingo, espero que de sol, sem calor em demasia, talvez até uma brisa outonal, prenunciando tempos mais amenos. A encantadora leitora estreará seus novos trajes de atleta e continuará a realçar as belas formas, indo à academia de ginástica até no fim de semana? O nobre amigo fará uma saudável caminhada, antes de se dirigir à roda de chope? O distinto casal envergará suas domingueiras e comparecerá à missa na igreja do bairro? Haverá uma macarronada em seu destino? Quiçá uma feijoada ou um churrasco? A juventude da casa exige um passeio diferente? É aniversário da sogra, o cunhado apareceu, o horóscopo exorta a buscar o amor de um certo alguém? Decisões, decisões. Coisa chata, há sempre pontos a favor ou contra qualquer escolha. E decidir, como aprendemos em documentários de televisão, causa estresse. Bem verdade que, segundo os documentários de televisão, tudo causa estresse, câncer ou frieira do dedão terminal, mas decidir realmente é chato e, quando não causa estresse, cansa um pouco. Para não falar na responsabilidade pelas consequências de qualquer decisão, como, por exemplo, ser barrado na churrascaria preferida por causa da companhia do cunhado, que dá grande prejuízo à casa, ao atacar o rodízio das três da tarde às oito da noite.
Contudo, julgo que há razões para crer que tudo isso será em breve coisa do passado. O governo (quando digo governo, muitas vezes quero referirme ao que mais propriamente seria chamado de "Estado"; mas, no Brasil, ninguém distingue Estado de governo, a começar pelo próprio governo, de maneira que vai assim mesmo) tende a cada vez mais cuidar de nós e resolver o que é bom para nós.
Se é que chegamos realmente a notar esse processo, não parece, porque ele se desenrola sem muitos protestos.
Ou talvez não haja protestos por ser essa nossa preferência, nunca se sabe.
Não ouvi nem li mais nada sobre o assunto, mas, no início da semana passada anunciou-se que, com o intuito de aperfeiçoar sua máquina arrecadadora, o governo encaminhou ao Congresso projeto de lei que dá aos agentes da Receita Federal poder de polícia e a faculdade de prescindir de autorização judicial até para realizar operações de busca e apreensão.
Se não foi exatamente assim, foi mais ou menos assim — e não tenho pejo de confessar que não li direito a notícia, pois, se o presidente pode assinar sem ler um documento que encaminha à nação, mais ainda posso eu admitir que não li direito uma notícia que comento aligeiradamente.
É possível que não se tenha falado mais no assunto porque ninguém estaria levando esse desatino a sério.
Mas eu levo, porque não houve desmentido e, do mesmo jeito que toda hora estamos descobrindo decretos secretos, portarias secretas, verbas secretas, cargos secretos, emendas solertes enfiadas em leis que não têm nada a ver com elas e outras variegadas manifestações de nosso engenho trampolineiro, poderemos um dia descobrir que agora estamos submetidos aos superfiscais ou superauditores, ou que outro nome recebam esses funcionários. Imagino que serão todos absolutamente incorruptíveis e acima de qualquer fraqueza humana, mas o diabinho que costuma atanazar os escritores não quer calar a boca e então, Deus me perdoe, acho possível que ocorra um diálogo como o que se segue.
— Boa tarde, Jota M. Pinto, Receita Federal, auditor plenipotenciário.
— Boa tarde. Receita Federal? Eu estou com algum problema com a Receita Federal? — Por enquanto, não. Bem, eu não vim tratar de assuntos fiscais no momento.
A política da Receita Federal é facilitar as coisas para o contribuinte, de maneira que não vou tomar seu tempo desnecessariamente. Vou direto ao ponto: eu quero comer sua mulher. Aliás, melhor dizendo, eu vou comer sua mulher.
— O quê? O senhor está maluco? Eu ouvi bem? O senhor vai comer o quê? — O quê, não. Quem. Sua mulher.
— O senhor vai comer a vovozinha, minha mulher não! — Ah é? Que é que você tem nessa gaveta? Ah, está vendo? Que dinheiro é esse? — Tire a mão de minha gaveta! Tire a mão de meu dinheiro! — Resistindo à autoridade, está preso. Suspeita de sonegação, flagrante de desacato, ocultação de provas, o negócio está feio. Cadê sua mulher? — O senhor está completamente maluco! Mesmo que eu fosse concordar com uma loucura dessas, o senhor pensa que minha mulher é um joguete, que não tem vontade própria, que é só falar pra ela e ela concorda? — Quando eu perguntar onde foi que ela declarou a pulseira, o colar e o broche de brilhantes que eu apreendi no seu cofre do banco, talvez.
Ou talvez quando eu disser a ela que, além de botar você em cana, vou fechar sua empresa.
— Escute, meu amigo, não dá para aliviar isso aí? — Dar, dá, cadê sua mulher? — Vivi! Ô Vivi! Vem cá, o moço da Receita quer te falar! Sim, claro, nada disso vai acontecer.
É tudo delírio de uma imaginação profissionalmente distorcida. Afinal de contas, não somente existem os limites impostos pela nossa Constituição, como também certos direitos, como a privacidade e a inviolabilidade dos nossos sigilos bancário e fiscal.
Claro, claro, eu sei. Não esqueçam de contar isso àquele caseiro do probleminha com o dr. Palocci.
Entrevista:O Estado inteligente
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