Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 03, 2009

A prisão de Polanski a pedido dos EUA

A conta chegou

Durante 32 anos, o diretor Roman Polanski, réu confesso do abuso sexual
de uma menina americana, viveu livre, leve e solto pela Europa. Agora,
a pedido da Justiça dos Estados Unidos, a Suíça pode extraditá-lo para
que ele, finalmente, vá a julgamento. O dado estranho: os promotores
estão sendo acusados de intolerância e puritanismo


Isabela Boscov

Ina Fassbender/Reuters e Scope Features/Landov
É CRIME, E PONTO
Samantha Gailey, então menina, que Polanski alcoolizou, drogou e sodomizou
em 1977: ela contava 13 anos e ele, 44; ela disse "não", e ele foi em frente.
O que tragédias passadas e grandes filmes têm a ver com isso?


No dia 26, o polonês Roman Polanski desembarcou em Zurique, na Suíça, em cujo festival de cinema seria contemplado com um prêmio pelo conjunto de sua obra. O diretor é dono de um chalé na estação de esqui de Gstaad, e entrou e saiu livremente do país diversas vezes nos últimos anos. Desta vez, porém, em vez da homenagem planejada, recebeu voz de prisão. Atendendo a um pedido formal, as autoridades suíças finalmente fizeram aquilo que – que coisa! – esqueceram de fazer em todas as outras ocasiões em que o cineasta esteve em seu território: cumpriram o primeiro passo de seu tratado de extradição com os Estados Unidos e detiveram Polanski, que há 32 anos é foragido da Justiça americana pelo crime de "sexo ilegal com uma menor".

A história: em 10 de março de 1977, em uma festa na casa do ator Jack Nicholson (que, para todos os efeitos, não estava presente), em Los Angeles, o diretor forneceu álcool e drogas à menina Samantha Gailey, de 13 anos, enquanto a fotografava. Depois, contra a vontade dela, segundo o horripilante depoimento de Samantha ao júri popular que acolheu o pedido de indiciamento, submeteu-a a sexo oral e a penetração vaginal e anal. Polanski alegou que o sexo fora consensual. A alegação não é apenas de péssimo caráter, como impossível nos termos da lei. O código penal californiano em vigor desde 1913 diz que até os 18 anos não existe sexo consensual, só estupro, e ele é tanto mais grave quanto maior for a diferença de idade entre o estuprador e a vítima. Polanski, portanto, foi indiciado por estupro e sodomia. A promotoria e a defesa, então, fizeram um acordo – recurso usual na Justiça americana. O indiciamento seria atenuado para "sexo ilegal com uma menor" e Polanski, então com 44 anos, receberia uma sentença a ser cumprida em liberdade condicional. Um tapa na mão, enfim. O cineasta chegou a honrar a primeira parte do acordo. Compareceu perante o juiz, declarou-se culpado (é portanto réu confesso, e por isso o crime não está sujeito a prescrever) e cumpriu 42 dias de avaliação em uma instituição psiquiátrica penal. Mas, solto sob fiança enquanto aguardava a sentença e temeroso de que o juiz decidisse encarcerá-lo, resolveu cair fora dos Estados Unidos.

Nestas três décadas como foragido, Polanski tomou precauções para se manter longe do alcance da Justiça americana. Pôde viver em paz na França porque é cidadão francês, e nesse caso os termos de extradição não necessariamente se aplicam. Mas nunca pôs os pés na Inglaterra, por exemplo, uma vez que ali seu envio para os Estados Unidos seria automático. Também a Suíça, como foi dito, tem acordo de extradição com os Estados Unidos – mas é um país para lá de compreensivo para com quem traz dinheiro para dentro de suas fronteiras. Por que, então, a prisão agora? Primeiro, porque a Suíça teve de cumprir sua parte ao receber um pedido formal da Justiça americana. E, não menos relevante, porque o próprio Polanski a provocou, com um bocado de soberba.

O documentário lançado em 2008 Roman Polanski: Wanted and Desired (Procurado e Desejado), da diretora Marina Zenovich, trouxe à tona a informação de que, na ocasião do crime, um promotor da Califórnia teria instado o juiz a ser mais enérgico, e este aceitara a ideia. Ocorre que comunicações com o juiz em que só uma das partes, seja ela a acusação ou a defesa, está presente são ilegais e podem invalidar judicialmente um processo. Com base nesse dado, Polanski tentou, em dezembro passado, anulá-lo. O novo juiz (o anterior já morreu) encarregado do caso deu a entender que considerava procedentes as bases da moção e que provavelmente não mandaria encarcerar Polanski – desde que ele comparecesse ao tribunal em Los Angeles dentro de noventa dias. A distância, seu apelo não seria aceito. O diretor não gostou dos termos e não se apresentou. Deixou claro que só aceitaria um perdão absoluto, nunca a possibilidade de ter de vir a responder de alguma forma pelo crime cometido. Causou, enfim, uma queda de braço, que culminou agora com sua detenção na Suíça, onde ele pode ficar vários meses ainda até que a extradição seja efetuada, se vier a sê-lo. (Uma complicação adicional para o processo: nesta semana, aquele promotor que teria cobrado rigor do juiz veio a público dizer que inventou essa história para tornar sua entrevista ao documentário "mais interessante".)

Polanski tem hoje 76 anos e desde 1989 está casado com a atriz francesa Emmanuelle Seigner, com quem tem um filho e uma filha. É um grande artista, autor de filmes extraordinários como O Bebê de Rosemary, Chinatown e O Pianista. Enfrentou ainda dramas terríveis no passado: em 1969, sua mulher, a atriz Sharon Tate, foi assassinada aos oito meses de gravidez pelo grupo do psicopata Charles Manson. Sua mãe morreu em um campo de extermínio, e ele próprio vagou durante anos de pavor pela Polônia ocupada pelos nazistas. Assim como em 2003, quando não pôde ir à cerimônia do Oscar que ganharia por O Pianista, levantou-se agora uma onda em sua defesa. Uma petição por sua libertação inclui a assinatura de Martin Scorsese, Penélope Cruz, Pedro Almodóvar, David Lynch, Walter Salles e – ironia – Woody Allen. Guardadas as nuances individuais de opinião, o entendimento dos signatários é que prender um artista como Polanski na chegada a um festival é covarde, atenta contra a liberdade de expressão e é manifestação do puritanismo americano. Que julgá-lo depois de tanto tempo é fútil, e que a própria vítima já o perdoou publicamente. De fato, Samantha Gailey (hoje de sobrenome Geimer) o fez. Mas, em 2003, disse também que gostaria que Polanski fosse trazido à Justiça, já que ela mesma se sentia como se estivesse cumprindo pena perpétua pelo acontecido.

O essencial, contudo, é que o perdão de Samantha é um assunto de foro íntimo, não de foro de lei. Embora antipática aos olhos de muitos, a atitude americana contém um corolário de correção inatacável. Anuncia que ninguém pode se presumir acima da Justiça e que cabe ao sistema judicial buscar por todos os meios a reparação por um crime, sem nunca deixar que esse ônus recaia sobre a vítima. E reafirma que os crimes de natureza sexual contra menores são hediondos, e que a arte, mesmo a grande arte, não é licença nem santuário para criminosos. O juiz que acenou com receptividade para Polanski, meses atrás, o fez com vistas a garantir a limpidez processual a que todo réu deve ter direito. Exigiu o mínimo, que seria o comparecimento do réu em sua corte. Polanski achou que o mínimo não se aplicava a ele. Estava enganado.

Silver Screen Collection/Hulton Archive/Getty Images

O PASSADO TRÁGICO
Sharon Tate, a mulher de Polanski, assassinada
aos oito meses de gravidez, em 1969: um sofrimento
inegável – e que deveria criar empatia, não indiferença, para com outras vítimas

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