O GLOBO
Com o progresso tecnológico e a popularização dos gravadores digitais, a vida passou a ser registrada por câmeras, celulares e laptops em todos os lugares, o tempo todo, por todo mundo. É o maior presente que poderiam receber os documentaristas do futuro. E um pesadelo para os ficcionistas.
Diante da onipresença, abundância e precisão dos registros — o 11 de setembro ao vivo foi o evento-simbolo — a ficção foi confrontada com a fúria e o absurdo da vida real e levada a novos patamares de exigência. O que ainda seria capaz de surpreender, divertir e emocionar o público no cinema ? É o que Quentin Tarantino nos oferece em seu “Bastardos inglórios”, integrando ficção e História para penetrar nas profundezas da condição humana, produzindo diversão e arte ao mesmo tempo.
A prioridade fundamental da ficção é passar-se por verdade, fazer o espectador acreditar naquela realidade inventada, convencê-lo a suspender temporariamente a sua crença nos acontecimentos e conhecimentos da vida e da História. É nesse arriscado exercício que brilha Tarantino, com uma fluência de linguagem e uma eficiência narrativa que envolvem, surpreendem e emocionam o espectador do início ao fim.
Como em toda a sua obra, o motor da história é a vingança, esse tão poderoso e humano sentimento, o monstro feroz que vive nos maus e nos bons, nos ímpios e nos piedosos, nos bandidos e mocinhos, quando reagem às inomináveis violências, injustiças e crueldades do ser humano, como individuo ou coletivamente. Tarantino não acredita na justiça dos homens nem na dos deuses, só na vingança pessoal dos seus personagens e, através deles, de todos nós. Contra o fanatismo, a estupidez e a brutalidade, com o poder de sua ficção, ele nos oferece uma vingança contra a História.
A façanha de Tarantino com seu “Bastardos” equivale a fazer um filme passado no Rio de Janeiro, na final da Copa do Mundo de 1950, com o Brasil vencendo o Uruguai no último minuto.
E feito com tanto talento, competência e verdade, que levaria o público ao delírio nos cinemas e faria os brasileiros se sentirem vingados da tragédia do “Maracanazo