Ditadores perpétuos
Pobre América Latina. Sob influência de Chávez, outro governante,
Daniel Ortega, da Nicarágua, não quer deixar o poder
Thomaz Favaro e Juliana Cavaçana
Ao cortar o entusiasmo dos que o insuflavam a buscar o terceiro mandato, o presidente Lula adquiriu estatura e força moral que o diferenciam radicalmente de muitos líderes da América Latina. A região, onde historicamente a normalidade é um hiato, está de novo sensível à pregação antidemocrática e, como um elástico esticado que busca a posição de descanso, mergulhando no caudilhismo. É o mesmo pântano populista em que a América Latina chafurdou no passado. A diferença agora é que os caudilhos se dizem de esquerda e "bolivarianos", tendo como traços comuns a impossibilidade de convivência com a imprensa livre, o desrespeito à Constituição e a formação de esquadras de bate-paus para intimidar fisicamente os adversários. O patrono da turma é o venezuelano Hugo Chávez, secundado por figuras menores como o equatoriano Rafael Correa e o boliviano Evo Morales. Em Honduras, Manuel Zelaya tentou o golpe bolivariano, mas seu voo de galinha foi interrompido em pleno ar pela Corte Suprema e pelos militares. O mais novo aderente ao caudilhismo de esquerda é o nicaraguense Daniel Ortega. A única surpresa é ele não ter sido o primeiro a aderir.
Ortega está cumprindo à risca o manual de instalação de ditaduras de esquerda em países de instituições fracas. Na segunda-feira passada, um grupo de seis juízes da Corte Suprema acatou um recurso, apresentado pelo próprio presidente, exigindo a anulação do artigo 147 da Constituição, que proíbe a reeleição. Caso a decisão seja ratificada por nove dos dezesseis magistrados do tribunal, Ortega poderá concorrer nas eleições de 2011. Como ele nomeou oito desses juízes e ainda tem direito a indicar mais um, o golpe constitucional está praticamente pronto. Quando for consumado, o presidente da Nicarágua engrossará o time dessa nova modalidade de ditadura.
Daniel Ortega foi o líder da Revolução Sandinista, que derrubou a ditadura de Anastásio Somoza, em 1979, e teve uma passagem ruinosa pela Presidência do país. Meses antes de deixar o poder, em 1990, ele comandou a piñata, o saque de bens e propriedades promovido pelos sandinistas. A casa em que o presidente mora foi roubada de um rico empresário. Ortega voltou para disputar as eleições em 2006 travestido de democrata, pedindo "perdão pelos erros do passado". Ganhou com 38% dos votos, e a máscara caiu rápido. Logo que tomou posse, ingressou na Alba, o clube dos amigos de Hugo Chávez. Em 2008, os sandinistas fraudaram descaradamente as eleições municipais, levando 105 das 146 prefeituras – ocupadas por políticos que, caso a reeleição seja permitida, também poderão se candidatar novamente.
Na Colômbia, o presidente Álvaro Uribe, que não pode ser definido como de esquerda, também achou uma maneira de mudar a Constituição para conseguir um segundo mandato e agora trabalha para emplacar o terceiro. Pode-se argumentar que ele tem suas razões. A mais óbvia delas é Uribe ter sido o único governante a enfrentar com sucesso as Farc, narcoguerrilha de esquerda que chegou a dominar territorialmente metade do país. Ele acha que precisa de mais um mandato para consolidar sua vitória contra as Farc. Vitória mesmo seria se Uribe tivesse fortalecido de tal forma as instituições democráticas da Colômbia a ponto de elas poderem prescindir de uma única personalidade política. Ainda assim, é gigantesca em qualidade e intenções a diferença que separa Uribe de um Chávez e de um Ortega. Os "bolivarianos" não querem apenas mais um mandato. Querem mesmo é se tornar ditadores perpétuos, massacrando a oposição, fechando jornais e redes de televisão, emasculando o Legislativo e o Judiciário, como Chávez fez na Venezuela.
"Convivi com Ortega por muitos anos e sei que sua vontade é manter-se no poder a qualquer custo, mesmo que isso implique a destruição de nossa incipiente democracia", disse a VEJA Sergio Ramírez, que foi vice-presidente da Nicarágua no primeiro governo de Ortega. Antes de conseguir o apoio de magistrados, Ortega já havia promovido uma campanha no Congresso para reformar a Constituição. Desse projeto autoritário fazem parte ele e sua mulher, Rosario Murillo. Em 1998, quando a filha dela do primeiro casamento acusou Ortega de tê-la estuprado dos 11 aos 19 anos de idade, Rosario ficou ao lado do marido. Ele se livrou do processo por estupro por ter imunidade parlamentar. Hoje, é a primeira-dama quem redige decretos presidenciais, preside sessões do governo e traduz para o inglês discursos de Ortega. Os sete filhos do casal foram colocados em postos estratégicos, sendo o mais ilustre deles um diretor do canal estatal. O apego de Ortega à democracia foi definido pelo próprio em discurso na última reunião do Foro de São Paulo, entidade que congrega os ideólogos da ditadura de esquerda. Disse Ortega: "(A democracia) é um instrumento para os capitalistas se perpetuarem no poder. Somente aprendi a usar os meios do inimigo para ascender ao comando do país". Uma vez usada com sucesso, a democracia, ensina o Foro de São Paulo, deve ser descartada.