O Estado de S. Paulo, 25/10/09
Uma leitura atenta dos jornais obriga a refletir sobre uma mudança perceptível nos termos do debate público. Episódios isolados combinaram-se a uma multiplicidade de iniciativas governamentais, como entrevistas e artigos e colunas, para compor um quadro tão instrutivo quanto revelador de como se forma uma agenda pública. Ou se deforma. A questão subjacente é: que Estado queremos, para que tipo de democracia? Esse tópico adquiriu centralidade nas democracias tradicionais a partir da crise global de 2008. Mas entre nós adquire contornos singulares: aponta para modos de fazer política que recriam, em lugar de minimizar, as características negativas de um contexto institucional instável e movediço.
Nas democracias dominantes, institucionalizadas, foram as próprias características da recuperação econômica que iluminaram a necessidade de construir um novo consenso sobre as relações entre o Estado, enquanto poder público, e o interesse público. A reversão do pânico financeiro criado pela “Grande Liquefação” (dos ativos financeiros) deixa um travo amargo entre os grandes perdedores: trabalhadores, contribuintes, proprietários de casas. O sucesso da reversão, medido pela recapitalização do setor financeiro, pela renovada confiança no futuro e pela recuperação da capacidade dos bancos de levantar novos financiamentos e gerar crédito, foi obtido graças à ação coordenada do poder soberano dos governos por intermédio dos respectivos bancos centrais. Foram canalizados recursos a custo zero justamente para a indústria cujos excessos geraram a crise. O contraste com a situação de milhões de desempregados, dos sem-casa, dos zilhões de consumidores obrigados a rever seus padrões de vida é a fonte original do conflito distributivo e do debate ideológico em torno ao Estado Democrático naqueles países. E é exacerbado pela recuperação gradual dos bônus pagos aos executivos do setor e pela resistência organizada de seus líderes à reforma do marco regulatório. Mas nesses contextos há, pelo menos, uma certeza: o confronto final entre conflitos políticos se dá por referência a um conjunto de procedimentos e de leis.
Vejamos o nosso cenário. A “Grande Liquefação” não ocorreu, nosso sistema financeiro é dos mais bem regulados do mundo e o quadro socioeconômico é positivo. A taxa de crescimento prevista para 2010 é de 5%, no mínimo, o desemprego está em baixa, a queda nos índices de desigualdade avança e se combina com a emergência atual e prospectiva de novas classes médias. A julgar pelas respostas do eleitor-consumidor às políticas sociais ativas do governo, a sensação térmica não podia ser melhor. Então, por que a pergunta “qual Estado para qual democracia” procede e adquire contornos especiais entre nós? A resposta é, a meu ver, a crescente defasagem entre a trajetória de consolidação do status econômico do Brasil, em escala global, o horizonte socioeconômico positivo, por um lado, e, por outro, a recriação, a cada passo, de um contexto institucional instável e movediço. Isso elimina o fator econômico da equação com que alguns cientistas políticos pretendem explicar o nosso subdesenvolvimento político e institucional. Os jornais das últimas semanas reforçam a seguinte hipótese: as transformações observadas no cenário econômico e socioeconômico criaram incentivos para aprofundar o ativismo avassalador do governo Lula no sentido de submeter a seu projeto de poder as instituições do Estado. De três formas: politizando-as, quando possível; submetendo-as a “testes de stress”, quando não; ou ainda por omissão conveniente quando os conflitos políticos são estruturais.
A ação dos traficantes no Morro dos Macacos, no Rio - as 29 mortes e a derrubada de um helicóptero da PM -, deu sentido de urgência à solução para o déficit de Estado como poder público. Isso significa a redefinição das responsabilidades entre União e as autoridades estaduais, num dos tópicos mais sensíveis e complexos do nosso federalismo democrático. Também ilustrou a omissão do poder central no controle das drogas e, sobretudo, do tráfico de armas.
Outra dimensão do Estado, como lei, entra em pauta agora, ou seja, sua capacidade de fazer valer a lei da forma impessoal que exige o Estado de Direito. Este poder continua sendo testado justamente pela autoridade constituída para preservá-lo, o presidente Lula. Os presidentes do STF e do TSE procuraram disciplinar a desenvoltura com que o presidente e a ministra Dilma Rousseff se colocam acima da Lei Maior: misturando a atividade administrativa, a fiscalização de obras, com o uso intensivo dos recursos públicos e retóricos para fins de campanha eleitoral. Somam-se a isso os ataques aos órgãos de controle do Poder Executivo, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público. O quadro de indefinição de regras se faz ainda mais contraditório graças a um novo desdobramento. Por um lado, o poder regulatório do Judiciário sobre si mesmo aumentou graças à ação disciplinadora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que conduz a modernização e a moralização desse Poder (Estado, 20 e 21/10). Mas não logrou fazer valer a lei entre os partidos, como se deduz pela migração tolerada entre estes. A politização manifesta-se de outras formas: desde as tentativas de controlar as agências reguladoras até a imposição de prazo exíguo ao Congresso para a discussão do pré-sal, passando pela intervenção branca na política de investimentos da Vale. Em meio às trapalhadas, o que isso revela é mais do que uma concepção tradicional do mix entre Estado e mercado. É a prevalência de uma percepção que define o Estado politizado: a de que as instituições são instrumentais e, por isso, formas mutáveis e transitórias de operar conflitos de interesses.
Lourdes Sola, professora da USP, ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, é diretora do Global Development Network, do International Institute for Democracy e do Conselho Internacional de Ciências Sociais